Glauco, discursando a Sócrates, em certo ponto expõe uma opinião sobre a natureza e a origem da justiça, e sobre aqueles que a praticam: – “Escuta, então, o que eu vou expor-te em primeiro lugar: qual é a natureza e a origem da justiça.” – “Aqueles que a praticam, agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça”. Para explicar essa opinião, ele apresenta um mito sobre um homem, teoricamente injusto, chamado Giges, que comete injustiça ao descobrir poderes mágicos. Então Glauco propõe uma suposição sobre o mito afirmando que um homem justo descobrindo os mesmos poderes mágicos praticaria também a mesma injustiça.
Opinião de Glauco sobre a natureza e a origem da justiça
Sócrates — Claro que me convém. Com efeito, de que assunto um homem sensato apreciaria falar e ouvir falar com mais frequência?
Glauco — A tua observação é excelente. Escuta, então, o que eu vou expor-te em primeiro lugar: qual é a natureza e a origem da justiça. Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. E esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — sofrê-la quando se é incapaz de vingança. Entre estes dois extremos, a justiça é apreciada não como um bem em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça lhe dá valor. Com efeito, aquele que pode praticar esta última jamais se entenderá com ninguém para se abster de cometê-la ou sofrê-la, porque seria louco. E esta, Sócrates, a natureza da justiça e a sua origem, segundo a opinião comum. Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça é o que compreenderemos bem se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamo-los e observemos até onde o desejo leva a um e a outro. Apanharemos o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é isso que a natureza toda procura como um bem, mas que, por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio.
Este é o mito descrito por Glauco, segundo Platão em A República II
Este homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível.
Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.
Para ampliar o conhecimento sobre o assunto, tomei a liberdade de acrescentar nesta postagem, parte do artigo Nova interpretação da passagem 359d da República de Platão, de Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes, publicado na Kriterion – Revista de Filosofia, nos critérios da Licença Creative Commons.
Exposição do Problema
O que queremos atentar com este trabalho é o caráter complexo de Gyges que fez com que se desenvolvessem diversas histórias a seu respeito, sendo a mais famosa aquela que conta a maneira como ele chegou ao poder. Sua fama percorreu o mundo grego influenciando tanto seus contemporâneos como aqueles que posteriormente vieram. A lírica grega desenvolvida entre os séculos VII e VI deixou, nos fragmentos que nos restaram, um precioso tesouro a respeito de Gyges da Lídia, que posteriormente veio a servir de base tanto para os historiadores como para os filósofos que dele falaram.
A primeira fonte que temos a seu respeito é de Arquíloco de Paros, que assim nos fala sobre ele:
οὔ µοι τὰ Γύγεω τοῦ πολυχρύσου µέλει,
οὐδ’ εἷλέ πώ µε ζῆλος, οὐδ’ ἀγαίοµαι
θεῶν ἔργα, µεγάλης δ’ οὐκ ἐρέω τυραννίδος·
απόπροθεν γάρ ἐστιν ὀφθαλµῶν ἐµῶν.
Não me preocupam as coisas de Gyges, rico em ouro,
Nem ainda me persegue a cobiça, nem invejo
As obras dos deuses, ou amor pela grande tirania;
Isto longe está dos meus olhos.(1)
Arquíloco que viveu entre 680-640 a.C.(2) foi contemporâneo de Gyges, que teria reinado entre 682-644 a.C.(3). Tal fragmento além de ser o primeiro a tratar de Gyges, parece também ter sido o primeiro a utilizar no grego o termo “tirania”. Segundo Ure, a palavra tirania não é grega, mas pode ser de origem lídia(4). Para Adrados, a palavra designa o poder absoluto dos monarcas orientais(5). De acordo com Euphorion (séc. III a.C.), Gyges foi o primeiro a ser chamado de tirano(6). Tal declaração pode ser apenas uma inferência de Hippias de Élis, que disse não ter Homero usado a palavra τύραννος, mas seu uso somente aparece com Arquíloco (FHG, II, fr.7, p.62).
O fr. 19W indica o poder de Gyges, entre riqueza e posses, que faz dele o senhor da Lídia e tirano da Ásia. Apesar de o poema estar na primeira pessoa, sabemos que Arquíloco não se coloca como falante, mas atribui o dito ao personagem Kháron, conforme nos informa Aristóteles:
καὶ τὸν Χάρωνα τὸν τέκτονα ἐν τῷ ἰάµβῳ οὗ ἀρχή
οὔ µοι τὰ Γύγεω
e Kháron, o carpinteiro, em iambo, assim começa:
Não a mim as coisas de Gyges(7)
O uso de uma personagem para dizer algo sobre outro é um método original da crítica de Arquíloco. Segundo West argumenta, há um particular tipo de poesia que os antigos chamam de iambo para usar personagens imaginários e situações(8).
Outros poetas líricos anteriores a Heródoto comprovam a historicidade de Gyges sendo estes Alcman (fl. 652 a.C.), Mimnermo (fl. 632 a.C.) e Hipponax (fl. 540 a.C.). É interessante notarmos que Mimnermo compôs versos elegíacos da batalha entre Smyrna contra Gyges e os Lídios, e parece ter escrito uma Smyrneida, infelizmente perdida(9). Também podemos encontrar um poema referente a Anacreonte que muito se parece como o que Arquíloco escreveu a respeito de Gyges:
οὔ µοι µέλει τὰ Γύγεω,
τοῦ Σαρδίων ἄνακτος·
οὐδ’ εἶλέ πώ µε ζῆλος
οὐδὲ φθονῶ τυράννοις.
Não me preocupam as coisas de Gyges,
Senhor de Sardis,
Nem me persegue a cobiça,
Nem invejo aos tiranos.(10)
No Greek Anthology, encontramos um poema semelhante atribuído Anacreonte, mudando em sua estrutura as linhas 3 e 4, apesar de manter dentro do fragmento a coerência quanto a riqueza e à tirania:
οὔ µοι µέλει τὰ Γύγεω,
τοῦ Σαρδίων ἄνακτος,
οὔθ’ αἱρέει µε χρυσός,
οὐκ αἰνέω τυράννους.
Não me preocupam as coisas de Gyges,
Senhor de Sardis,
Nem me captura o ouro,
Nem louvo os tiranos.(11)
Ressaltamos que o que aqui se diz de Anacreonte foi produzido posteriormente à morte do poeta no período helenístico e atribuído ao poeta de forma pseudepigráfica. Esse material se encontra reunido na obra conhecida como Anacreontea. De qualquer maneira, estes, assim como os demais fragmentos dos outros poetas, demonstram a repercussão do lídio Gyges entre os gregos.
Heródoto nos conta a história de Gyges da seguinte maneira(12): Candaules, o soberano da Lídia, oferece a Gyges, seu guarda pessoal, a permissão para que este veja sua mulher nua e, assim, possa comprovar que ela é a mais bela. Pois, segundo diz Candaules, “os homens confiam menos em seus ouvidos do que em seus olhos”(13) Mesmo dizendo-se persuadido [peíthomai] pelas palavras de Candaules, de que sua mulher é a mais bela, Gyges é obrigado a ver para comprovar tal fato. Escondido atrás da porta do quarto, Gyges vê a rainha nua e quando se preparava para se retirar, acabou sendo visto por ela sem que ele assim percebesse. Entendendo o ocorrido e percebendo que se tratava de obra de Candaules, a rainha nada fala e aguarda. No dia seguinte, a rainha chama Gyges em sua presença e apresenta a este dois caminhos [dyôn hodôn]: ou mata o soberano ou morre(14). Este para evitar a morte escolhe matar o soberano e assim toma para si a mulher e a soberania [gynaíka kaì tèn basileíen].(15)
É interessante notarmos que as fontes anteriores a Heródoto são todas líricas, o que demonstra uma tradição entre os poetas líricos de narrar acontecimentos dos quais ouviram falar. A interpretação histórica da passagem 359d, segundo entendemos, deve levar em conta não só Heródoto como também toda essa poesia lírica anterior a este e que afirma a fama de Gyges entre os gregos.
Uma Nova Interpretação da Passagem
O estudo da passagem escolhida em Platão apresenta uma série de dificuldades, como foi demonstrado através da apresentação das duas interpretações acima. No entanto, para o tratamento da mesma, ambas se demonstraram insuficientes em seus argumentos. Para resolver tal problema propomos uma nova interpretação da passagem, mas antes devemos analisar em que ponto as interpretações anteriores são defectíveis.
Para demonstrar os problemas da interpretação histórica utilizaremos as explicações de Slings(41) sobre a passagem 359d1 e a crítica que faz ao ponto de vista histórico:
i) O anel é sempre chamado ‘Anel de Gyges’, como na passagem 612b. Comentários posteriores a Platão mantêm o termo. Um comentário ao mss A [τὴν κατὰ Γύγην τὸν Λυδὸν ἱστορίαν καὶ τὸν δακτύλιον] deixa de fora o antepassado e também o comentário ao mss F [περὶ τῆς τοῦ Γύγου σφενδόνης]. A exceção é apenas em Proclo e serve apenas para provar que os textos ADF já existiam na Antiguidade.
ii) Não nos parece que Platão estava preocupado com a genealogia lídia, mas podemos tentar manter que ‘Anel de Gyges’ é um termo curto para ‘Anel do ancestral de Gyges’. No entanto, outros elementos da história, como o assassinato do soberano e a cooperação da rainha, são ditos sobre Gyges ele mesmo, e não sobre seu bisavô, que tem o mesmo nome.
iii) τοῦ Λυδοῦ não pode aqui se referir a Kroisos, mesmo que Heródoto tenha se referido a ele diversas vezes como ὁ Λυδός. Neste contexto, τοῦ Λυδοῦ deveria significar ‘o presente soberano da Lídia’, o que não faria sentido. No contexto da passagem, ὁ Λυδός não poderia se referir a Kroisos por excelência.
iv) Não é coincidência que a palavra lídia transcrita como γύγης, realmente significou ‘avô; antepassado’. Isto era conhecido pelos gregos e aparece no Lexicon de Hesychius: γ972 (Latte) γύγαι· πάπποι.
Hesychius viveu no séc. V d.C. e é conhecido por ter compilado um léxico de palavras gregas incomuns e pouco conhecidas. Por ter vivido na mesma época que Proclo (que também era do séc. V d.C.), acreditamos que a inserção do προγόνῳ a passagem 359d1 é tardia e provavelmente desta época, influenciada pelo léxico de Hesychius. Parece que na época de Platão a palavra γύγης seria facilmente associada com a palavra πάππος, no entanto, com a perda progressiva de seu significado, a inserção de προγόνῳ foi utilizada para rememorar tal raiz etimológica. Concordamos com Slings que a inserção de τῷ προγόνῳ seria um erro em relação ao texto primitivo. Ast em sua edição da República corrige a passagem retirando o τῷ e προγόνῳ da passagem, mas mantendo o genitivo intacto [Γύγου τοῦ Λυδοῦ], o que não dá conta da inserção. Parece-nos que a melhor maneira de corrigir o texto seria a explicação de Slings que assim coloca como sendo a passagem original: Γύγῃ τῷ Λυδῷ. Dessa forma, entraria em harmonia com a passagem 612b, mantendo Gyges como único possuidor do anel no texto platônico, assim como também estaria de acordo com a posterior inclusão dos termos τῷ e προγόνῳ sem prejuízo para a interpretação da passagem 359d(47).
Artigo recebido em 23/2/2011 e aprovado em 4/7/2011.
1- Fr. 19W. A tradução é nossa.
2- Para a data aproximada de Arquíloco nos baseamos em JACOBY, F. “The Date of Archilochos”, The Classical Quarterly, v. 35, n.3, p. 97-109, jul.-oct. 1941.
3- A data comumente aceita pelos estudiosos é de 687-652 a.C., principalmente depois dos estudos de GELZER, H. “Das Zeitalter des Gyges”, RhM, v. 30, p. 230-268, 1875. No entanto, concordamos com os estudos de SPALINGER, Anthony J., “The Date of the Death of Gyges and its Historical Implications”, JAOS, v. 98, n. 4, p. 400-409, oct.-dec., 1978. Spalinger em seu texto aponta para o fato de que a morte de Gyges só é apontada no Prisma A dos anais de Assurbanipal. Tal Prisma data de 643/2 a.C., o que faz Spalinger calcular a morte de Gyges por volta de 644 a.C. Para calcular a data inicial do reinado de Gyges, nos baseamos na duração dita por Heródoto do reinado de Gyges, trinta e oito anos.
4- URE, P. N. The Origen of Tyranny. Cambridge: Cambridge University Press, 1922, p. 134.
5- ADRADOS, F. R. Líricos Griegos: Elegiacos y Yambógrafos Arcaicos, v.1. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1999, nota 2, p. 54.
6- MÜLLER, C. Fragmenta Historicum Graecorum, vol. III. Paris: Editore Ambrosio Firmin Didot, 1849, fr. 1, p. 72. Demais citações de Müller serão abreviadas por FHG, indicando-se em seguida volume, fragmento ou/e página.
7- ARISTÓTELES. Arte Retórica, 1418b30-31. Utilizamos para o grego a edição de W. D. Ross, Aristotelis Ars Rhetorica (Oxford: Clarendon Press, 1959). A tradução é nossa.
8- WEST, Martin. Studies in Greek Elegy and Iambus. (Untersuchungen zur antiken Literatur und Geschichte, Band 14) Berlin and New York: Walter de Gruyter, 1974, p. 22-39.
9- Frs. 13W e 13aW.
10- Anacreontea 8W. A tradução é nossa.
11- Greek Anthology, XI.47.1-4. A tradução é nossa.
12- HERODOTO. Histórias, I.8-15. Demais citações a Heródoto serão abreviadas por Hdt., indicando em seguida livro e parte. Utilizamos para o grego o texto estabelecido por Carolus Hude, Herodoti Historiae, Tomes I e II, (Oxford: Oford University Press, 1927).
13- Hdt. I.8.2.
14- Hdt. I,11.2-3.
15- Hdt. I,12.2.
16- PLATÃO. República, 359b-360b. Utilizamos aqui a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).
17- Utilizamos aqui o texto grego da República estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003).
18- Cf. ADAM, James. The Republic of Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p. 126-7,
41- SLINGS, S. R., “Critical Notes on Plato’s Politeia II”, Mnemosyne, v. 17, fasc. 3-4, p. 381-383, 1989.
47- Feitas as modificações, o texto poderia ser assim traduzido: “terem a faculdade que se diz ter sido concedida a Gyges, o Lídio” ou com a posterior inclusão dos termos “ao antepassado lídio, Gyges”.