Sócrates — Acreditarias, meu caro Glauco, que os que fundamentaram a educação na música e na ginástica fizeram-no para formar o corpo por meio de uma e a alma por meio de outra?
Glauco — Por que me fazes essa pergunta?
Sócrates — E que me parece que tanto uma como a outra foram criadas principalmente para a alma.
Glauco — Como assim?
Sócrates — Já notaste, certamente, qual é a disposição de espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e não se interessam pela música? Ou dos que fazem o contrário?
Glauco — De que disposição falas?
Sócrates — Da rudeza e dureza de uns, da moleza e brandura dos outros.
Glauco—Já notei que aqueles que se entregam unicamente à ginástica contraem demasiada rudeza e que os que cultivam os omitiria a decência.
Sócrates — Entretanto, é o elemento generoso da sua natureza que provoca a rudeza; bem dirigido, tornar-se-ia coragem, mas, demasiado tenso, degenera em dureza e mau humor, como é natural.
Glauco — Assim me parece.
Sócrates — E a brandura não faz parte do caráter do filósofo? Demasiado frouxa, amolece-o mais do que o permitido, mas, dirigida, abranda-o e ordena-o.
Glauco — Perfeitamente.
Sócrates — E nós queremos que os nossos guerreiros reúnam estas duas características.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Não devemos, então, colocá-las em harmonia uma com a outra?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E a sua harmonia não toma a alma ao mesmo tempo moderada e corajosa?
Glauco — Certamente.
Sócrates — Ao passo que a sua desarmonia a torna covarde e grosseira?
Glauco — Sim.
Sócrates — Logo, quando um homem permite que a música o encante com o som da flauta e lhe derrame na alma, pelos ouvidos, essas harmonias suaves, moles e plangentes de que falávamos há pouco, passa a vida distraído, exultante de alegria pela beleza do canto: em primeiro lugar, suaviza o elemento irascível da sua a]ma, como o fogo amolece o ferro e o torna útil, de inútil e dum que era antes; mas, se continua a entregar-se ao encantamento, a sua coragem não tarda a dissolver-se e a fundir-se, até se reduzir a nada, até ser extraída, como um nervo, da sua alma, tornando-o um guerreiro sem vigor.
Glauco — Tens razão.
Sócrates — E, se recebeu da natureza uma alma débil e frouxa, este resultado não se faz esperar; mas se, ao contrário, nasceu ardente, o seu coração enfraquece-se, toma-se impressionável e predisposto a irritar-se e a acalmar-se. Em vez de corajoso, ei-lo irritável, colérico e cheio de mau humor.
Sócrates — Porém, e se este homem se entrega inteiramente à ginástica e à boa mesa, sem se importar com a música e a filosofia? Em primeiro lugar, o sentimento das suas forças não o enche de orgulho e coragem e não se toma mais intrépido do que era?
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — Mas, se não fizer outra coisa e não mantiver contato com a musa? Ainda que tivesse na alma um certo desejo de aprender, como não participa em nenhuma ciência, em nenhuma pesquisa, em nenhuma discussão nem em nenhum exercício da música, esse desejo toma-se fraco, surdo e cego: não é despertado, nem cultivado, nem liberto dos grilhões das sensações.
Glauco — Assim e.
Sócrates — Ei-lo, pois, já feito inimigo da razão e das musas; já não se serve do discurso para persuadir; alcança em tudo os seus fins pela violência e a selvageria, como um animal feroz, e vive no seio da ignorância e da grosseria, sem harmonia e sem graça.
Glauco — E perfeitamente exato.
Sócrates — Existem na alma dois elementos: a coragem e a sabedoria; um deus, direi eu, deu aos homens duas artes, a música e a ginástica; não as deu para a alma e para o corpo, a não ser acidentalmente, mas para aqueles dois elementos, a fim de que se harmonizem entre si, sendo estendidos ou soltos até ao ponto conveniente.
Glauco — Assim parece.
Sócrates — Aquele, pois, que associa com mais beleza a ginástica à música e, com mais tato, as aplica à sua alma, é músico perfeito e possui a ciência da harmonia muito mais do que aquele que afina entre si as cordas de um instrumento.
Glauco — E com toda a justiça, Sócrates.
Sócrates — Portanto, Glauco, precisaremos também na nossa cidade de um líder capaz de regular esta associação, se quisermos salvar a nossa constituição.
Glauco — Por certo que precisaremos, e muito.
Sócrates — Tal é o nosso plano geral de educação e disciplina da juventude. Seria inútil nos estendermos a respeito das danças dos nossos jovens, as suas caças com ou sem cães as suas competições de ginástica e hípicas. É suficientemente claro que as regras a seguir nisso dependem das que já estabelecemos e não é difícil descobri-las.
Glauco — Certo que não.
A REPÚBLICA – SÓCRATES