O cuidado com a música na educação da criança e do jovem para gerar pessoas honradas capazes de descobrir por si só as regras do bem viver

Sócrates — Finalmente, resumindo, faz-se necessário que os responsáveis pela cidade se esforcem para que a educação não se altere em seu conhecimento, que velem por ela a todo o momento e, com todo o cuidado possível, evitem que nada de novo, no que diz respeito à ginástica e à música, se introduza contra as regras estabelecidas com receio de que, se alguém disser: os homens apreciam mais os cantos mais novos”, vá se imaginar talvez que o poeta se refere não a árias novas, mas a uma nova maneira de cantar, e que disso se faça o elogio. Ora, hão se deve nem louvar nem admitir semelhante interpretação porque é de recear que a passagem a um novo gênero musical ponha tudo em perigo. Com efeito, nunca se atacam as formas da música sem abalar as maiores leis das cidades, como diz Damon, e eu concordo com ele.

Adimanto — inclui-me também entre os que assim pensam.

Sócrates — Pois é nela, na música, segundo parece, que os magistrados devem edificar o seu corpo de guarda.

Adimanto —. Sem dúvida, o desprezo das leis insinua-se aí facilmente sem que se dê conta.

Sócrates — Sim, sob a forma de jogo e como se não causasse nenhum mal.

Adimanto — A princípio, não faz senão introduzir pouco a pouco e infiltrar-se suavemente nos usos e costumes, daí, sai mais forte e passa às relações sociais; em seguida, das relações sociais marcha sobre as leis e as constituições com muita insolência, Sócrates, até que, finalmente, haja consumado a ruína total dos cidadãos e do Estado.

Sócrates .— É realmente assim?

Adimanto — É o que me parece.

Sócrates — Mais uma razão, pois, como dizíamos no começo, para que os nossos jovens devam participar de jogos mais legítimos? Se os seus jogos são desregrados eles também o serão e não poderão tornar-se quando adultos, homens obedientes às leis e virtuosos.

Adimanto — Sem dúvida.

Sócrates — Ao passo que, quando as crianças jogam honestamente desde o começo, a ordem, por meio da música, penetra nelas e, ao contrário do que acontece no caso que citavas, acompanhando-as por toda a parte, aumenta-lhes a força e revigora na cidade o que nela estiver em declínio.

Adimanto — É a pura verdade.

Sócrates — E também descobrem essas regras que parecem de pouca importância e que os seus predecessores deixaram cair em desuso.

Adimanto — Quais são elas?

Socrates — Por exemplo, as que ordenam aos jovens que respeitem o silêncio, quando convém, em presença dos anciãos; que os ajudem a sentar-se, que se levantem para lhes cederem o lugar, que rodeiem os pais de cuidados — e as que respeitam ao corte dos cabelos, às roupas, ao calçado, ao aspecto exterior do corpo e outras coisas semelhantes. Não a-és que descobrirão estas regras?

Adimanto — Creio que sim.

Sáaates — Tolice seria, pois, legislar sobre estas matérias, dado que os decretos promulgados, orais ou escritos, não teriam efeito e não poderiam ser cumpridos.

Adimanto — E como o poderiam ser, então?

Sócrates — O impulso dado pela educação, Adimanto, determina tudo o que se segue. Por isso, o semelhante não apela sempre para o seu semelhante?

Adimanto — Sim.

Sócrates — Poderíamos dizer que, no fim, este impulso conduz a um grande e perfeito resultado, seja para o bem ou para o mal.

Adimanto — Sem dúvida.

Sócrates — Tal a razão pela qual não irei mais longe e não empreenderei legislar acerca disso.

Adinianto — Tens razão.

Sócrates — Mas agora, em nome dos deuses, que faremos no que concerne aos negócios da ágora, aos contratos que os cidadãos das diversas classes aí celebram entre si e, se quiseres, aos contratos de mão-de-obra? Que faremos no que concerne às injúrias, às violências, à apresentação das solicitações, à organização dos juízes, à instituição e ao pagamento das taxas que poderiam ser necessárias sobre os mercados e nos portos e, em geral, à regulamentação do mercado, da cidade, do porto e do resto? Ousaremos legislar sobre tudo isto?

Adimanto — Não convém fazer tais prescrições a pessoas honradas; elas mesmas descobrirão facilmente a maior parte das regras que é preciso estabelecer nessas matérias.

Sócrates — Sim, meu amigo, se Deus lhes conceder manter intactas as leis que enumeramos mais acima.

Adimanto — Do contrário, todos passarão a vida a fazer um grande número de tais regras e a reformá-las, na suposição de que chegarão à melhor.

Platão, A República – Livro IV

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