Uma imagem da justiça
Sócrates — Aqui está, portanto, perfeitamente realizado o nosso sonho, a respeito do qual declarávamos ter dúvidas, a saber, que seria bastante provável que, logo que iniciássemos a fundação da cidade, nos depararíamos com determinado princípio e modelo da justiça.
Glauco — Assim é, de fato.
Sócrates — Portanto, meu amado Glauco, quando exigíamos que o sapateiro, o carpinteiro ou qualquer outro artesão exercesse bem seu oficio sem intrometer-se em outras atividades, estávamos estabelecendo sem querer uma imagem da justiça.
Glauco — Aparentemente.
Sócrates — Com efeito, a justiça se parece perfeitamente com esta imagem, com a única diferença de que ela não governa os assuntos externos do homem, mas apenas seus assuntos internos, seu ser verdadeiro, não deixando que nenhum dos elementos da alma exerça uma tarefa que não lhe é específica, nem que os outros elementos usurpem mutuamente suas respectivas funções. Ela pretende que o homem coloque em perfeita ordem os seus reais problemas domésticos, que assuma o comando de si mesmo, se discipline e conquiste a sua própria amizade; que institua um acordo perfeito entre os três elementos da sua alma, assim como entre os três tons extremos de uma harmonia — o mais agudo, o mais grave, o médio, e os intermédios, se os houver —, e que, ligando-os uns aos outros, se transforme, de múltiplo que era, em uno, moderado e harmonioso; que somente então se preocupe, se precisar se preocupar, em obter riquezas, em cuidar do corpo, em exercer sua atividade na política ou nos assuntos privados, e que em todas essas ocasiões considere justa e honesta a ação que salvaguarda e contribui para completar a ordem que implantou em si mesmo, e sábia a ciência que governa essa ação; que, ao contrário, considere injusta a ação que destrói essa ordem, e ignorante a opinião que governa esta última ação.
Glauco — Tudo isso é a mais pura verdade, meu caro Sócrates.
A moderação como uma harmonia poem em uníssono de oitavas todas as classes.
Sócrates — Vês que era bem fundada nossa conjectura, quando dizíamos que a moderação se assemelha a uma harmonia.
Glauco — Por que razão?
Sócrates — Porque não se dá com ela o mesmo que com a coragem e a sabedoria, que, residindo respectivamente numa parte da cidade, tornam esta corajosa e sábia. A moderação não atua assim: espalhada no conjunto do Estado, põe em uníssono da oitava os mais fracos, os mais fortes e os intermédios, sob a relação da sabedoria, se quiseres, da força, se também quiseres, do número, das riquezas ou de qualquer outra coisa semelhantes. De sorte que podemos dizer, com toda a razão, que a moderação consiste nessa concórdia, harmonia natural entre o superior e o inferior quanto à questão de saber quem deve mandar, tanto na cidade como no indivíduo.
Glauco — Estou de pleno acordo contigo.
Sócrates — Temos assim três virtudes que foram descobertas na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade também participa na virtude, que poderá ser? E evidente que é a justiça.
Glauco — É evidente.
Justiça significa guardar apenas os bens que nos pertencem e em exercer unicamente a função que nos é própria.
Sócrates — Se fosse necessário decidir qual dessas virtudes (sabedoria, coragem e moderação) é a que, pela sua presença, contribui em maior dose para a perfeição da cidade, seria difícil dizer se é a conformidade de opinião ‘entre os governantes e os governados; ou, nos guerreiros, a salvaguarda da opinião legítima a respeito das coisas que se deverão ou não temer; ou a sabedoria e a vigilância entre os que governantes, ou se o que contribui, sobretudo, para essa perfeição é a presença, na criança, na mulher, no escravo, no homem livre, no artesão, no governante e no governado, dessa virtude pela qual cada um se ocupa da sua tarefa própria e não interfere na dos outros.
Glauco — Difícil, por certo, decidir tal questão.
Sócrates — Assim, ao que me parece, a virtude que mantém cada cidadão nos limites da sua própria tarefa concorre, para a virtude de uma cidade, com a sabedoria, a moderação e a coragem dessa cidade.
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — Mas não dirás que é a justiça essa força que concorre com as outras para a virtude de uma cidade?
Glauco — Sim, por certo.
Sócrates — Examina ainda a questão da seguinte maneira, para veres se a tua opinião continua a ser a mesma: encarregaras os magistrados de julgar os processos?
Glauco — Certamente.
Sócrates — E procurarão eles, ao fazê-lo, outra felicidade que não seja esta: impedir que cada parte fique com os bens da outra ou seja privada dos seus?
Glauco — Não, nenhuma outra finalidade.
Sócrates — E isso é justo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Mais uma prova, pois, de que a justiça significa guardar apenas os bens que nos pertencem e em exercer unicamente a função que nos é própria.
Glauco — Perfeitamente.
Sócrates — Nesse caso, vejamos se pensas igual a mim. Se um carpinteiro resolver exercer o oficio de sapateiro ou um sapateiro o de carpinteiro e trocarem entre si as ferramentas ou os respectivos salários — ou se um mesmo homem exercesse a um só tempo estes dois ofícios e se todas as mudanças possíveis, exceto aquela que vou dizer, se produzirem, — crês que com isto possam advir muitos danos à cidade?
Glauco — Não, por certo.
A confusão gerada pela ganância homem causa a ruína da cidade.
Sócrates — Se, por outro lado, um homem que a natureza predispôs para ser artesão ou a exercer qualquer outra atividade lucrativa, orgulhoso de sua riqueza, do grande número das suas relações, da força ou de outra vantagem semelhante, tenta elevar-se à categoria de guerreiro, ou um guerreiro à categoria de magistrado, sem que ambos possuam aptidão para tal, ou se um mesmo homem procura desempenhar todas estas funções ao mesmo tempo, crês, como eu, que estas mudanças e esta confusão provocam a ruína da cidade?
Glauco — Infalivelmente.
Sócrates — A confusão entre essas três classes acarreta para a cidade o máximo da deterioração e, com toda a razão, pode-se considerar esta desordem o maior dos malefícios.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Então, não é a injustiça o maior malefício que se pode cometer contra a cidade?
Glauco — Sim, é.
Sócrates — Logo, é nisso que consiste a injustiça. Ao contrário, quando a classe dos homens de negócios, a dos guerreiros e a dos magistrados exercem a sua função própria e só se ocupam dessa função, não é o inverso da injustiça e o que torna a cidade justa?
Glauco — Acredito que não pode ser de outra maneira.