O Mito de Aquiles em resumo – noções básicas sobre a educação homérica

O auge da história de Aquiles descrita no poema A Ilíada de Homero está, resumidamente, ligada à guerra entre gregos e troianos que, segundo Gonçalves (2008), aconteceu em meados do século XII a.C.. Nessa guerra, após dez anos tentando invadir Tróia, os gregos fingiram desistir, e, ainda, presenteá-la com um grande cavalo de madeira que possibilitou a invasão, pois, nele se escondiam guerreiros gregos. Aquiles foi o melhor guerreiro desta guerra, além de o mais belo. Ele era capaz de expressar grande ternura e, também, muita violência.

Quando era ainda bebê, sua mãe Tétis, o mergulhou no rio Estige após tê-lo mantido no fogo, num ritual que o tornou invulnerável, exceto seu calcanhar, por onde sua mãe o segurou. Peleu, seu pai, confiou sua criação e educação a Quirão, que era uma criatura homem-cavalo. A morte de Aquiles se deu por uma flechada mortal em seu calcanhar vulnerável. Embora a etimologia de seu nome não tenha sido esclarecida, podemos nos apoiar em duas possibilidades mais prováveis: “aquele cujo povo sente dor” e “aquele que assusta o exército”. (DEMGOL, p. 36-37).

Na educação homérica, Aquiles é um dos heróis modelos para a educação do jovem grego, pois, nele estão entrelaçados os aspectos proposto pela educação homérica, tais como, honra, coragem e amizade. Sendo homem-herói bem educado como guerreiro, em certo momento, se depara com a necessidade de dispor sua bravura e técnica de guerreiro a serviço do rei, ou seja, em benefício de seus compatriotas e de seu Estado. Aspectos humanos bastante marcante se manifestam quando sua dor pela morte de seu amigo Pátroco se transforma em desejo de vingança contra o troiano Heitor. Mas, nele também encontramos características fabulosas, como, por exemplo, sua invulnerabilidade adquirida ao ser mergulhado no rio Estige, exceto, o seu calcanhar.

No contexto da educação homérica, características tipicamente humanas são relacionadas aos deuses, assim como, rituais religiosos e aspectos de divindade, são caracterizados também nos homens-heróis, pois, heróis e deuses são apresentados em nível de igualdade. Na edução homérica, o guerreiro é imortal, ainda que morra no campo de batalha. O herói Aquiles, tem a honra relacionada à morte, e não à felicidade, e é modelo para a ética homérica, na qual, cada homem deve, por méritos ou qualidades, exibir o conceito areté, ou seja, sua riqueza de virtudes e sua excelência.

REFERÊNCIAS

DEMGOL, Dicionário Etimológico da Mitologia Grega Online, Coletivo de Autores, disponível emhttps://demgol.units.it/pdf/demgol_pt.pdf – acessado em: 06/09/2017

FABER, Marcos. Mitos Antigos – Historia Livre. O Mito de Aquiles, disponível emhttp://www.historialivre.com/mitologia/mito_de_aquiles.pdf- acessado em: 06/09/2017

Fundamentos históricos e filosóficos da educação / Rubens Arantes. Corrêa, Stefan Vasilev Krastanov – Batatais, SP: Claretiano, 2013. 198 p.

GONÇALVES, Adriano José. Olhar semi-ótico; A Cólera de Aquiles. 2008, disponível emhttp://comunicologospromove.blogspot.com/2008/10/olhar-semitico-clera-de-aquiles.html, acessado em: 10/09/2017

MURARI, Juliana Cristhina, AMARAL, Roseli Gall do Amaral, PEREIRA MELO, José Joaquim – Objetivos e Características da Educação Homérica: uma reflexão sobre o conceito areté, 2009, IX Congraço Nacional de Educação – EDUCERE III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia – PUCPR, disponívelhttp://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/2562_1928.pdf, acessado em: 10/09/2017.

Wikipédia, A Enciclopédia Livre, disponível emhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Aquiles, acessado em: 07/09/2017

O significado da justiça, uma imagem da justiça e o efeito da moderação – segundo Sócrates

Uma imagem da justiça

Sócrates — Aqui está, portanto, perfeitamente realizado o nosso sonho, a respeito do qual declarávamos ter dúvidas, a saber, que seria bastante provável que, logo que iniciássemos a fundação da cidade, nos depararíamos com determinado princípio e modelo da justiça.
Glauco — Assim é, de fato.
Sócrates — Portanto, meu amado Glauco, quando exigíamos que o sapateiro, o carpinteiro ou qualquer outro artesão exercesse bem seu oficio sem intrometer-se em outras atividades, estávamos estabelecendo sem querer uma imagem da justiça.
Glauco — Aparentemente.
Sócrates — Com efeito, a justiça se parece perfeitamente com esta imagem, com a única diferença de que ela não governa os assuntos externos do homem, mas apenas seus assuntos internos, seu ser verdadeiro, não deixando que nenhum dos elementos da alma exerça uma tarefa que não lhe é específica, nem que os outros elementos usurpem mutuamente suas respectivas funções. Ela pretende que o homem coloque em perfeita ordem os seus reais problemas domésticos, que assuma o comando de si mesmo, se discipline e conquiste a sua própria amizade; que institua um acordo perfeito entre os três elementos da sua alma, assim como entre os três tons extremos de uma harmonia — o mais agudo, o mais grave, o médio, e os intermédios, se os houver —, e que, ligando-os uns aos outros, se transforme, de múltiplo que era, em uno, moderado e harmonioso; que somente então se preocupe, se precisar se preocupar, em obter riquezas, em cuidar do corpo, em exercer sua atividade na política ou nos assuntos privados, e que em todas essas ocasiões considere justa e honesta a ação que salvaguarda e contribui para completar a ordem que implantou em si mesmo, e sábia a ciência que governa essa ação; que, ao contrário, considere injusta a ação que destrói essa ordem, e ignorante a opinião que governa esta última ação.
Glauco — Tudo isso é a mais pura verdade, meu caro Sócrates.

A moderação como uma harmonia poem em uníssono de oitavas todas as classes.

Sócrates — Vês que era bem fundada nossa conjectura, quando dizíamos que a moderação se assemelha a uma harmonia.
Glauco — Por que razão?
Sócrates — Porque não se dá com ela o mesmo que com a coragem e a sabedoria, que, residindo respectivamente numa parte da cidade, tornam esta corajosa e sábia. A moderação não atua assim: espalhada no conjunto do Estado, põe em uníssono da oitava os mais fracos, os mais fortes e os intermédios, sob a relação da sabedoria, se quiseres, da força, se também quiseres, do número, das riquezas ou de qualquer outra coisa semelhantes. De sorte que podemos dizer, com toda a razão, que a moderação consiste nessa concórdia, harmonia natural entre o superior e o inferior quanto à questão de saber quem deve mandar, tanto na cidade como no indivíduo.
Glauco — Estou de pleno acordo contigo.
Sócrates — Temos assim três virtudes que foram descobertas na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade também participa na virtude, que poderá ser? E evidente que é a justiça.
Glauco — É evidente.

Justiça significa guardar apenas os bens que nos pertencem e em exercer unicamente a função que nos é própria.

Sócrates — Se fosse necessário decidir qual dessas virtudes (sabedoria, coragem e moderação) é a que, pela sua presença, contribui em maior dose para a perfeição da cidade, seria difícil dizer se é a conformidade de opinião ‘entre os governantes e os governados; ou, nos guerreiros, a salvaguarda da opinião legítima a respeito das coisas que se deverão ou não temer; ou a sabedoria e a vigilância entre os que governantes, ou se o que contribui, sobretudo, para essa perfeição é a presença, na criança, na mulher, no escravo, no homem livre, no artesão, no governante e no governado, dessa virtude pela qual cada um se ocupa da sua tarefa própria e não interfere na dos outros.
Glauco — Difícil, por certo, decidir tal questão.
Sócrates — Assim, ao que me parece, a virtude que mantém cada cidadão nos limites da sua própria tarefa concorre, para a virtude de uma cidade, com a sabedoria, a moderação e a coragem dessa cidade.
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — Mas não dirás que é a justiça essa força que concorre com as outras para a virtude de uma cidade?
Glauco — Sim, por certo.
Sócrates — Examina ainda a questão da seguinte maneira, para veres se a tua opinião continua a ser a mesma: encarregaras os magistrados de julgar os processos?
Glauco — Certamente.
Sócrates — E procurarão eles, ao fazê-lo, outra felicidade que não seja esta: impedir que cada parte fique com os bens da outra ou seja privada dos seus?
Glauco — Não, nenhuma outra finalidade.
Sócrates — E isso é justo?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Mais uma prova, pois, de que a justiça significa guardar apenas os bens que nos pertencem e em exercer unicamente a função que nos é própria.
Glauco — Perfeitamente.
Sócrates — Nesse caso, vejamos se pensas igual a mim. Se um carpinteiro resolver exercer o oficio de sapateiro ou um sapateiro o de carpinteiro e trocarem entre si as ferramentas ou os respectivos salários — ou se um mesmo homem exercesse a um só tempo estes dois ofícios e se todas as mudanças possíveis, exceto aquela que vou dizer, se produzirem, — crês que com isto possam advir muitos danos à cidade?
Glauco — Não, por certo.
A confusão gerada pela ganância homem causa a ruína da cidade.
Sócrates — Se, por outro lado, um homem que a natureza predispôs para ser artesão ou a exercer qualquer outra atividade lucrativa, orgulhoso de sua riqueza, do grande número das suas relações, da força ou de outra vantagem semelhante, tenta elevar-se à categoria de guerreiro, ou um guerreiro à categoria de magistrado, sem que ambos possuam aptidão para tal, ou se um mesmo homem procura desempenhar todas estas funções ao mesmo tempo, crês, como eu, que estas mudanças e esta confusão provocam a ruína da cidade?
Glauco — Infalivelmente.
Sócrates — A confusão entre essas três classes acarreta para a cidade o máximo da deterioração e, com toda a razão, pode-se considerar esta desordem o maior dos malefícios.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Então, não é a injustiça o maior malefício que se pode cometer contra a cidade?
Glauco — Sim, é.
Sócrates — Logo, é nisso que consiste a injustiça. Ao contrário, quando a classe dos homens de negócios, a dos guerreiros e a dos magistrados exercem a sua função própria e só se ocupam dessa função, não é o inverso da injustiça e o que torna a cidade justa?
Glauco — Acredito que não pode ser de outra maneira.

A República – Platão – Livro IV

O cuidado com a música na educação da criança e do jovem para gerar pessoas honradas capazes de descobrir por si só as regras do bem viver

Sócrates — Finalmente, resumindo, faz-se necessário que os responsáveis pela cidade se esforcem para que a educação não se altere em seu conhecimento, que velem por ela a todo o momento e, com todo o cuidado possível, evitem que nada de novo, no que diz respeito à ginástica e à música, se introduza contra as regras estabelecidas com receio de que, se alguém disser: os homens apreciam mais os cantos mais novos”, vá se imaginar talvez que o poeta se refere não a árias novas, mas a uma nova maneira de cantar, e que disso se faça o elogio. Ora, hão se deve nem louvar nem admitir semelhante interpretação porque é de recear que a passagem a um novo gênero musical ponha tudo em perigo. Com efeito, nunca se atacam as formas da música sem abalar as maiores leis das cidades, como diz Damon, e eu concordo com ele.

Adimanto — inclui-me também entre os que assim pensam.

Sócrates — Pois é nela, na música, segundo parece, que os magistrados devem edificar o seu corpo de guarda.

Adimanto —. Sem dúvida, o desprezo das leis insinua-se aí facilmente sem que se dê conta.

Sócrates — Sim, sob a forma de jogo e como se não causasse nenhum mal.

Adimanto — A princípio, não faz senão introduzir pouco a pouco e infiltrar-se suavemente nos usos e costumes, daí, sai mais forte e passa às relações sociais; em seguida, das relações sociais marcha sobre as leis e as constituições com muita insolência, Sócrates, até que, finalmente, haja consumado a ruína total dos cidadãos e do Estado.

Sócrates .— É realmente assim?

Adimanto — É o que me parece.

Sócrates — Mais uma razão, pois, como dizíamos no começo, para que os nossos jovens devam participar de jogos mais legítimos? Se os seus jogos são desregrados eles também o serão e não poderão tornar-se quando adultos, homens obedientes às leis e virtuosos.

Adimanto — Sem dúvida.

Sócrates — Ao passo que, quando as crianças jogam honestamente desde o começo, a ordem, por meio da música, penetra nelas e, ao contrário do que acontece no caso que citavas, acompanhando-as por toda a parte, aumenta-lhes a força e revigora na cidade o que nela estiver em declínio.

Adimanto — É a pura verdade.

Sócrates — E também descobrem essas regras que parecem de pouca importância e que os seus predecessores deixaram cair em desuso.

Adimanto — Quais são elas?

Socrates — Por exemplo, as que ordenam aos jovens que respeitem o silêncio, quando convém, em presença dos anciãos; que os ajudem a sentar-se, que se levantem para lhes cederem o lugar, que rodeiem os pais de cuidados — e as que respeitam ao corte dos cabelos, às roupas, ao calçado, ao aspecto exterior do corpo e outras coisas semelhantes. Não a-és que descobrirão estas regras?

Adimanto — Creio que sim.

Sáaates — Tolice seria, pois, legislar sobre estas matérias, dado que os decretos promulgados, orais ou escritos, não teriam efeito e não poderiam ser cumpridos.

Adimanto — E como o poderiam ser, então?

Sócrates — O impulso dado pela educação, Adimanto, determina tudo o que se segue. Por isso, o semelhante não apela sempre para o seu semelhante?

Adimanto — Sim.

Sócrates — Poderíamos dizer que, no fim, este impulso conduz a um grande e perfeito resultado, seja para o bem ou para o mal.

Adimanto — Sem dúvida.

Sócrates — Tal a razão pela qual não irei mais longe e não empreenderei legislar acerca disso.

Adinianto — Tens razão.

Sócrates — Mas agora, em nome dos deuses, que faremos no que concerne aos negócios da ágora, aos contratos que os cidadãos das diversas classes aí celebram entre si e, se quiseres, aos contratos de mão-de-obra? Que faremos no que concerne às injúrias, às violências, à apresentação das solicitações, à organização dos juízes, à instituição e ao pagamento das taxas que poderiam ser necessárias sobre os mercados e nos portos e, em geral, à regulamentação do mercado, da cidade, do porto e do resto? Ousaremos legislar sobre tudo isto?

Adimanto — Não convém fazer tais prescrições a pessoas honradas; elas mesmas descobrirão facilmente a maior parte das regras que é preciso estabelecer nessas matérias.

Sócrates — Sim, meu amigo, se Deus lhes conceder manter intactas as leis que enumeramos mais acima.

Adimanto — Do contrário, todos passarão a vida a fazer um grande número de tais regras e a reformá-las, na suposição de que chegarão à melhor.

Platão, A República – Livro IV

A educação pela música na visão de Sócrates – análise dos discursos poéticos

A PRIMEIRA REGRA

As fábulas, Deus, deuses, a regra e a exceção

Sócrates — Tu admites que os discursos fazem parte da música ou não?
Adimanto — Admito.
Sócrates — E existem dois tipos de discursos, os verdadeiros e os falsos?
Adimanto — Sim, existem.
Sócrates — Ambos entrarão na nossa educação ou começaremos pelos falsos?
Adimanto — Não estou entendendo.
Sócrates — Nós não começamos contando fábulas às crianças? Geralmente são falsas, embora encerrem algumas verdades. Utilizamos essas fábulas para a educação das crianças antes de levá-las ao ginásio.
Adimanto — É verdade.
Sócrates — Este é o motivo por que eu dizia que a música deve preceder a ginástica.
Adimanto — E tens razão.
Sócrates — E não sabes que o começo, em todas as coisas, é sempre o mais importante, mormente para os jovens? Com efeito, é sobretudo nessa época que os modelamos e que eles recebem a marca que pretendemos imprimir-lhes.
Adimanto — Com certeza.
Sócrates — Sendo assim, vamos permitir, por negligência, que as crianças ouçam as primeiras fábulas que lhes apareçam, criadas por indivíduos quaisquer, e recebam em seus espíritos entender, quando forem adultos?
Adimanto — De forma alguma permitiremos.
Sócrates — Portanto, parece-me que precisamos começar por vigiar os criadores de fábulas, separar as suas composições boas das más. Em seguida, convenceremos as amas e as mães a contarem aos filhos as que tivermos escolhido e a modelarem-lhes a alma com as suas fábulas muito mais do que o corpo com as suas mãos. Mas a maior parte das que elas contam atualmente devem ser condenadas.
(Naquela época, costumava-se massagear as crianças, para que adquirissem uma boa conformação.)
Adimanto — Quais?
Sócrates — Julgaremos as pequenas pelas grandes, porquanto umas e outras devem ser calcadas nos mesmos moldes e produzir o mesmo efeito; concordas?
Adimanto — Concordo. Mas não sei quais são essas grandes fábulas de que falas.
Sócrates — São as de Hesíodo, Homero e de outros poetas. Eles compuseram fábulas mentirosas que foram e continuam sendo contadas aos homens.
Adimanto — Quais são essas fábulas e o que há nelas de condenável?
Sócrates — O que antes e acima de tudo deve ser condenado, mormente quando a mentira não possui beleza.
Adimanto — E quando não possui?
Sócrates — Quando os deuses e os heróis são mal representados, como um pintor que pinta objetos sem nenhuma semelhança com os que pretendia representar.
Adimanto — E com razão que se condenem tais coisas. Mas como dizemos isso e a que estamos nos referindo?
Sócrates — Em primeiro lugar, aquele que criou a maior das mentiras a respeito dos maiores dos seres criou-a sem beleza, quando disse que Urano fez o que relata Hesíodo e como Cronos se vingou. Mesmo que o comportamento de Cronos e a maneira como foi tratado pelo filho fossem verdadeiros, penso que não deviam ser narrados com tanta leviandade a seres desprovidos de razão e às crianças, mas que seria preferível enterrá-los no silêncio; e, se é necessário falar nisso, deve-se fazê-lo em segredo, diante do menor número possível de ouvintes, depois de ter imolado, não um porco, mas uma vítima grande e difícil de conseguir, para que haja muito poucos iniciados.
Adimanto — De fato, essas histórias são abomináveis.
Sócrates — E não devem ser contadas na nossa cidade. Não se deve dizer diante de um jovem ouvinte que, cometendo os piores crimes e castigando um pai injusto da forma mais cruel, não faz nada de extraordinário e age como os primeiros e os maiores dos deuses.
Adimanto — Não, por Zeus! A mim também parece que tais coisas não se devam dizer!
Sócrates — Deve-se também evitar contar que os deuses fazem guerra entre si e que armam ciladas recíprocas, porque não é verdade, se quisermos que os futuros guardiães da nossa cidade considerem o cúmulo da vergonha discutir levianamente. E ainda menos se lhes deve contar ou representar em tapeçarias as lutas dos gigantes e esses ódios de toda a espécie que armaram os deuses e os heróis contra os seus parentes e amigos. Ao contrário, se quisermos convencê-los de que jamais a discórdia reinou entre os cidadãos e que tal coisa é ímpia, devemos fazer com que os adultos lhes digam isto desde a infância. Cumpre ainda cuidar para que poetas componham para eles fábulas que tendam para o mesmo objetivo. Que jamais se lhes conte a história de Hera acorrentada pelo filho, de Hefesto precipitado do céu pelo pai, por ter defendido a mãe, que aquele maltratava, e os combates de deuses que Homero imaginou, quer essas ficções sejam alegóricas, quer não. Pois uma criança não pode diferenciar uma alegoria do que não é, e as opiniões que recebe nessa idade tornam-se indeléveis e inabaláveis. E devido a isso que se deve fazer todo o possível para que as primeiras fábulas que ela ouve sejam as mais belas e as mais adequadas a ensinar-lhe a virtude.
Adimanto — Tudo que dizes é profundamente sensato.
Porém, se alguém nos indagasse o que entendemos por isso e que fábulas são essas, que responderíamos?
Sócrates — Mas, Adimanto, nem tu nem eu somos poetas, mas fundadores de cidade. Compete aos fundadores conhecer os modelos que devem seguir os poetas nas suas histórias e proibir que se afastem deles; mas não lhes compete criar fábulas.
Adimanto — Está bem. Mas, ainda assim, gostaria de saber quais são os modelos que se devem seguir nas histórias que se referem aos deuses.
Sócrates — Vou dizer-te. Deve-se representar Deus sempre tal como é, quer seja representado na epopeia, na poesia lírica ou na tragédia.
Adimanto — Perfeitamente de acordo.
Sócrates — Não é certo que Deus é essencialmente bom e não é assim que se deve falar dele?
Adimanto — Sem dúvida.
Sócrates — Mas nada do que é bom pode ser prejudicial, não é mesmo?
Adimanto — É o que penso.
Sócrates — Pode prejudicar aquilo que em si não é prejudicial?
Adimanto — De modo algum.
Sócrates — Pode fazer mal aquilo que não prejudica?
Adimanto — Também não.
Sócrates — E o que não faz mal pode ser causa de algum mal?
Adimanto — Impossível.
Sócrates — E aquilo que é bom é benéfico? O bem é benéfico?
Adimanto — Sim.
Sócrates — E, por conseguinte, é a causa do êxito?
Adimanto — E.
Sócrates — Então, o bem não é a causa de todas as coisas; é a causa do que é bom e não do que é mau.
Adimanto — Necessariamente.
Sócrates — Assim, Deus, dado que é bom, não é a causa de tudo, como se pretende vulgarmente; é causa apenas de uma pequena parte do que acontece aos homens, e não o é da maior, já que os nossos bens são muito menos numerosos que os nossos males e só devem ser atribuídos a Ele, enquanto para os nossos males devemos procurar outra causa, mas não Deus.
Adimanto — Nada mais certo, penso eu.
Sócrates — E impossível, portanto, admitir, de Homero ou de qualquer outro poeta, erros acerca dos deuses tão absurdos como estes:

Dois tonéis se encontram no palácio de Zeus,
Um repleto de fados felizes, e outro, infelizes,
e aquele a quem Zeus concede dos dois
ora experimenta do mal, ora do bem;
mas o que só recebe do segundo, sem mistura,
a devoradora fome persegue-o sobre a terra divina;
e ainda que Zeus é para nós
dispensador tanto dos bens como dos males.

E, se algum poeta nos disser, a respeito da violação dos juramentos e dos tratados de que Pandaro se tomou culpado, que foi cometida por instigação de Atena e de Zeus, não o aprovaremos, assim como não aprovaremos aquele que tomou Artemis e Zeus responsáveis pela querela e julgamento das deusas; da mesma forma não permitiremos que ouçam os versos de Ésquio onde se diz que:
Deus engendra o crime entre os mortais quando quer arruinar inteiramente uma casa.
(Menção à pendência entre as três deusas: Hera, Atena e Afrodite, e ao julgamento de Páris a respeito. Tratava-se de saber qual das três deusas era a mais bela, O prêmio, um pomo de ouro, foi atribuído a Afrodite, o que provocou que as deusas derrotadas planejassem a perdição dos troianos, consumada por intermédio do rapto de Helena por Pária.)
Se alguém compõe um poema a respeito das desgraças de Níobe, dos pelópidas, dos troianos ou acerca de qualquer outro tema semelhante, não deve dizer que tais desgraças são obra de Deus ou, se o disser, deve justificá-lo, mais ou menos como nós, agora, tentamos fazer. Deve declarar que, com isso, Deus só fez o que era justo e bom, e que aqueles a quem castigou tiraram proveito daí; mas nós não devemos dar ao poeta a liberdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e que Deus foi o autor dos seus males. Ao contrário, se ele disser que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre. Portanto, se disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que deve ter boas leis, porque seria pecaminoso, abusivo e absurdo.
Adimanto — Tal regra me agrada.
Sócrates — Assim, esta é a primeira regra e o primeiro modelo a que devemos obedecer nos discursos e nas composições poéticas: Deus não é a causa de tudo, mas tão-somente do bem.
Adimanto — Isso basta.

A REPÚBLICA – PLATÃO

Títulos e subtítulos meus

A educação pela música na visão de Sócrates – análise de canto, melodia, harmonia e ritmo

Sócrates — Agora, meu amigo, parece-me que acabamos com esta parte da música que se refere aos discursos e às fábulas, porque tratamos tanto do conteúdo quanto da forma.
Adimanto — Também me parece.

O CARÁTER DO CANTO E DA MELODIA

A melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo.

Sócrates — Resta-nos tratar do caráter do canto e da melodia, concordas?
Adimanto — Sim, evidentemente.
Sócrates — Haveria alguém que não dissesse, de pronto, o que devemos dizer acerca deles e o que devem ser, se nos quisermos manter de acordo com as ideias precedentes?
Então, Glauco, sorrindo, disse:
— Por mim, Sócrates, corro o risco de ser a exceção, porque não estou muito em condições de inferir, neste momento, o que devem ser essas coisas; no entanto, suspeito-o.
Sócrates — Estás ao menos em condições de fazer esta primeira observação, que a melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo.
Glauco — Quanto a isso, sim.
Sócrates — Quanto às palavras, diferem das que não são cantadas? Não devem ser compostas segundo as regras que enunciamos há pouco e de forma semelhante?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E a harmonia e o ritmo devem corresponder às palavras?
Glauco — Sim.
Sócrates — Já dissemos que não deveriam existir queixas e lamentações nos nossos discursos.
Glauco — Com efeito, por serem desnecessárias.
Sócrates — Quais são as harmonias plangentes? Diz-nos, visto que és músico.
Glauco — São a lídia mista, a aguda e outras semelhantes.
Sócrates — Convém, pois, suprimi-las, não é verdade? Porque são inúteis para as mulheres honradas e, com maior razão, para os homens.
Glauco — Certamente.
Sócrates — Nada há mais inconveniente para os guardiães do que a embriaguez, a moleza e a indolência.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Quais são harmonias efeminadas usadas nos banquetes?
Glauco — A jânica e a lídia que se denominam harmonias lassas.
Sócrates — De tais harmonias, meu amigo, tu te servirás para formar guerreiros?
Glauco — De maneira nenhuma. Receio que não te restem senão a dórica e a frígia.
Sócrates — Não conheço todas as harmonias, mas deixa-nos aquela que imita os tons e as entonações de um valente empenhado em batalha ou em qualquer outra ação violenta, quando, por infortúnio, corre ao encontro dos ferimentos, da morte ou é atingido por outra infelicidade, e, em todas essas circunstâncias, firme no seu posto e resoluto, repele os ataques do destino. Deixa-nos outra harmonia para imitar o homem empenhado numa ação pacífica, não violenta mas voluntária, que procura persuadir, para obter o que pede, quer um deus por intermédio de suas preces, quer um homem por intermédio das suas lições e conselhos, ou, ao contrário, solicitado, ensinado, convencido, se submete a outro e, tendo por estes meios sido bem-sucedido, não se enche de orgulho, mas se comporta em todas as circunstâncias com sabedoria e moderação, feliz com o que lhe acontece. Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitarão com mais beleza as entonações dos infelizes, dos felizes, dos sábios e dos valentes, estas deixa-as ficar.
Glauco — As harmonias que me pedes para deixar não são senão aquelas que mencionei há pouco.
Sócrates — Não precisaremos pois, para os nossos cantos e as nossas melodias, de instrumentos com muitas cordas, que reproduzem todas as harmonias.
Glauco — Não, por certo.
Sócrates — Nem tampouco precisaremos de fabricantes de triângulos, pedis e outros instrumentos de muitas cordas e harmonias.
Glauco — Não, aparentemente.
Sócrates — Admitirás em nossa cidade os fabricantes e os tocadores de flauta? Não é este instrumento que pode emitir mais sons, e os instrumentos que reproduzem todas as harmonias não são imitações da flauta?
Glauco — E evidente.
Sócrates — Assim, restam a lira e a citara, úteis à cidade; nos campos, os pastores terão o pífaro.
Glauco — E o que se infere do nosso raciocínio.
Sócrates — De resto, meu amigo, não inovamos ao preferirmos Apolo e os instrumentos de Apoio a Mársias e seus instrumentos.
Glauco — Não, por Zeus! Não creio que estejamos inovando.
Sócrates — Mas, pelo cão! Sem nos darmos conta disso, purificamos a cidade que ainda há pouco dizíamos mergulhada na languidez.
Glauco — E o fizemos sabiamente.

OS RITMOS

Sócrates — Vamos concluir nossa reforma. Depois das harmonias, resta-nos examinar os ritmos; não devemos procurá-los variados, nem formando cadências de toda a espécie, mas diferenciar os que exprimem uma vida regulada e corajosa; quando os tivermos diferenciado, obrigaremos a cadência e a melodia a adequarem-se às palavras, e não as palavras à cadência e à melodia. Que ritmos são esses, compete a ti indicá-los como fizeste para as harmonias.
Glauco — Em verdade, não posso satisfazer-te. Que existem três espécies com as quais se entrelaçam todas as cadências, como existem quatro espécies de tons de onde se tiram todas as harmonias, posso afirmá-lo, visto que o estudei; mas quais são aqueles que imitem tal gênero de vida eu não sei.
Sócrates — Consultaremos depois Damoni e perguntar-lhe-emos quais são as cadências que convêm à baixeza, à insolência, à loucura e aos outros vícios, e que ritmos se devem deixar para os seus contrários. Creio tê-lo vagamente ouvido pronunciar os nomes de enópiio composto, dáctilo, heroico, mas não sei que arranjo dava a este último ritmo, em que igualava os tempos fracos e os tempos fortes e que terminava com uma breve ou uma longa. Também chamava, creio eu, a um “pé iambo”, a outro “troqueu” e os marcava com longas e breves. E, em alguns desses metros, censurava ou louvava, se bem me lembro, o movimento da cadência, não menos que os próprios ritmos — ou algo que participava dos dois —, porquanto não o sei ao certo; mas, como dizia, coloquemos estas questões a Damori, discuti-las exigiria muito tempo. Que dizes?
Glauco — Penso do mesmo modo.
Sócrates — Mas, ao menos, poderás convir em que a graça e a falta de graça dependem da perfeição ou da imperfeição do ritmo.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Mas o bom e o mau ritmo seguem e imitam, um, o bom estilo, o outro, o mau, e o mesmo acontece com a boa e má harmonia, quando o ritmo e a harmonia se harmonizam com as palavras, como dizíamos há pouco, e não as palavras com o ritmo e a harmonia.
Glauco — É claro que ambos devem harmonizar-se com as palavras.
Sócrates — Mas a maneira de dizer e o próprio discurso não dependem do caráter da alma?
Glauco — Como não?
Sócrates — E todo o resto não depende do discurso?
Glauco — Depende.
Sócrates — Assim, o bom discurso, a boa harmonia, a graça e a euritmia dependem da simplicidade do caráter, não dessa tolice a que denominamos amavelmente simplicidade, mas da simplicidade autêntica de um espírito que alie a bondade à beleza.
Glauco — Perfeitamente.
Sócrates — Não devem, pois, os nossos jovens procurar em tudo essas qualidades, se quiserem realizar a tarefa que lhes é própria?
Glauco — Sim.
Sócrates — Também a pintura está repleta dessas qualidades, assim como todas as artes da mesma natureza. Está repleta delas a arte do tecelão, do bordador, do arquiteto, do fabricante dos outros objetos, e até a natureza dos corpos e das plantas; em tudo isto, com efeito, há graça ou feiura. E a feiura, a arritmia, a desarmonia são irmãs da má linguagem e do mau caráter, ao passo que as qualidades opostas são irmãs e imitações do caráter oposto, da sabedoria e da bondade da alma.
Glauco — Certamente.

ARTISTAS DE MÉRITO SEGUEM A NATUREZA DO BELO

Sócrates — Mas bastará velar sobre os poetas e obrigá-los a não introduzirem nas suas criações senão a imagem do bom caráter? Não devemos vigiar também os outros artesãos e impedi-los de introduzirem o vício, a incontinência, a baixeza e a feiura na pintura dos seres vivos, na arquitetura ou em qualquer outra arte? E, se não puderem conformar-se a esta regra, não devemos proibi-los de trabalharem em nossa casa, com receio de que os nossos guardiães, criados no meio das imagens do vício como numa má pastagem, colham e pastem aí, um pouco cada dia, muita erva daninha e desta maneira reúnam, sem se darem conta, um grande mal na alma? Não devemos, ao contrário, procurar artistas de mérito, capazes de seguirem a natureza do belo e do gracioso, a fim de que os nossos jovens, a semelhança dos habitantes de uma terra sadia, tirem proveito de tudo que os rodeia, de qualquer lado que chegue aos seus olhos ou ouvidos uma emanação das obras belas, tal como uma brisa transporta a saúde de regiões salubres, e predispondo-os insensivelmente, desde a infância, a imitar e a amar o que é reto e razoável?
Glauco — Seria uma excelente educação.
Sócrates — E, decerto, por esta razão, meu caro Glauco, que a educação musical é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem-educado. E também porque o jovem a quem é dada como convém sente muito vivamente a imperfeição e a feiura nas obras da arte ou da natureza e experimenta justamente desagrado. Louva as coisas belas, recebe-as alegremente no espírito, para fazer delas o seu alimento, e torna-se assim nobre e bom; ao contrário, censura justamente as coisas feias, odeia-as logo na infância, antes de estar de posse da razão, e, quando adquire esta, acolhe-a com ternura e reconhece-a como um parente, tanto melhor quanto mais tiver sido preparado para isso pela educação.
Glauco — Tais são as vantagens que se esperam da educação pela música.
Sócrates — Quando aprendíamos as letras, só considerávamos que as conhecíamos suficientemente ao nos darmos conta de que os seus elementos, em pequeno número, mas dispersos em todas as palavras, já não nos escapavam e, nem numa palavra curta nem numa comprida, não os desprezávamos, como inúteis de serem notados; então, ao contrário, esforçávamo-nos por distingui-los, convencidos de que não existia outra maneira de aprender a ler.
Glauco — É verdade.
Sócrates — É também verdade que não reconheceremos as imagens das letras, refletidas na água ou num espelho, antes de conhecermos as próprias letras, porquanto tudo isto é objeto da mesma arte e do mesmo estudo.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Assim também, pelos deuses, afirmo que não seremos músicos, nós e os guardiães que pretendemos educar, antes de sabemos reconhecer as formas da moderação, da coragem, da generosidade, da grandeza de alma, das virtudes, suas irmãs, e dos vícios contrários, onde quer que apareçam dispersos; antes de descobrirmos a sua presença, onde quer que se encontrem, elas ou as suas imagens, sem desprezarmos nenhuma, nem nas pequenas coisas nem nas grandes, convencidos de que elas são objeto da mesma arte e do mesmo estudo.
Glauco — Não pode ser de outra forma.

A MÚSICA CULMINA NO AMOR AO BELO

Sócrates — E, porventura, não seria o mais belo espetáculo, para quem o pudesse contemplar, o homem que reúne ao mesmo tempo boas disposições na sua alma e, no exterior, caracteres que se assemelham e harmonizam com essas disposições, porque participam do mesmo modelo?
Glauco — Sim, o mais belo.
Sócrates — O mais belo é também o mais digno de ser amado?
Glauco — Como não?
Sócrates — Assim sendo, o músico amará esses homens tanto quanto possível; mas não amará o homem desprovido de harmonia.
Glauco — Convenho em que isso aconteça, pelo menos se for a alma a ter algum defeito; porém, se for o corpo, tomará o seu partido e consentirá em amar.
Sócrates — Sei que tens amado ou amas, e eu te aprovo. Mas diz-me: o prazer excessivo harmoniza-se com a temperança?
Glauco — Como poderia isso acontecer, visto que o excessivo prazer não perturba a alma menos que a excessiva dor?
Sócrates — E com as outras virtudes?
Glauco — Tampouco.
Sócrates — E com a insolência e a incontinência?
Glauco — Muitíssimas vezes.
Sócrates — Sabes de um prazer maior e mais vivo do que o do amor sensual?
Glauco — Não, não há nenhum mais violento.
Sócrates — Por outro lado, o amor autêntico ama com sabedoria e medida a ordem e a beleza?
Glauco — Por certo.
Sócrates — Logo, nada de violento nem de parecido com a incontinência deve aproximar-se do amor autêntico.
Glauco — Nada.
Sócrates — Portanto, a volúpia não se deve aproximar dele; não deve entrar no comércio do amante e da criança que se amam com amor verdadeiro.
Glauco — Não, por Zeus, Sócrates, não deve se aproximar!
Sócrates — Por isso mesmo, tu decretarias como lei, na cidade cujo plano estamos a traçar, que o amante possa adorar, visitar, abraçar o jovem como se fora um filho, objetivando um fim nobre, se conseguir convencê-lo; mas, quanto ao resto, deve ter com o objeto dos seus cuidados relações tais que nunca seja acusado de ir demasiadamente longe, se não quiser incorrer na censura de homem sem educação nem sentimento do belo.
Glauco — Sim.
Sócrates — Parece-te agora, como a mim parece, que a nossa discussão sobre a música chegou ao fim? Acabou onde devia acabar; com efeito, a música deve culminar no amor ao belo.
Glauco — Sou da mesma opinião.

A República – Platão

Títulos e subtítulos meus.

A educação fundamentada na música e na ginástica na visão de Sócrates

Sócrates — Acreditarias, meu caro Glauco, que os que fundamentaram a educação na música e na ginástica fizeram-no para formar o corpo por meio de uma e a alma por meio de outra?
Glauco — Por que me fazes essa pergunta?
Sócrates — E que me parece que tanto uma como a outra foram criadas principalmente para a alma.
Glauco — Como assim?
Sócrates — Já notaste, certamente, qual é a disposição de espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e não se interessam pela música? Ou dos que fazem o contrário?
Glauco — De que disposição falas?
Sócrates — Da rudeza e dureza de uns, da moleza e brandura dos outros.
Glauco—Já notei que aqueles que se entregam unicamente à ginástica contraem demasiada rudeza e que os que cultivam os omitiria a decência.
Sócrates — Entretanto, é o elemento generoso da sua natureza que provoca a rudeza; bem dirigido, tornar-se-ia coragem, mas, demasiado tenso, degenera em dureza e mau humor, como é natural.
Glauco — Assim me parece.
Sócrates — E a brandura não faz parte do caráter do filósofo? Demasiado frouxa, amolece-o mais do que o permitido, mas, dirigida, abranda-o e ordena-o.
Glauco — Perfeitamente.
Sócrates — E nós queremos que os nossos guerreiros reúnam estas duas características.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Não devemos, então, colocá-las em harmonia uma com a outra?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E a sua harmonia não toma a alma ao mesmo tempo moderada e corajosa?
Glauco — Certamente.
Sócrates — Ao passo que a sua desarmonia a torna covarde e grosseira?
Glauco — Sim.
Sócrates — Logo, quando um homem permite que a música o encante com o som da flauta e lhe derrame na alma, pelos ouvidos, essas harmonias suaves, moles e plangentes de que falávamos há pouco, passa a vida distraído, exultante de alegria pela beleza do canto: em primeiro lugar, suaviza o elemento irascível da sua a]ma, como o fogo amolece o ferro e o torna útil, de inútil e dum que era antes; mas, se continua a entregar-se ao encantamento, a sua coragem não tarda a dissolver-se e a fundir-se, até se reduzir a nada, até ser extraída, como um nervo, da sua alma, tornando-o um guerreiro sem vigor.
Glauco — Tens razão.
Sócrates — E, se recebeu da natureza uma alma débil e frouxa, este resultado não se faz esperar; mas se, ao contrário, nasceu ardente, o seu coração enfraquece-se, toma-se impressionável e predisposto a irritar-se e a acalmar-se. Em vez de corajoso, ei-lo irritável, colérico e cheio de mau humor.
Sócrates — Porém, e se este homem se entrega inteiramente à ginástica e à boa mesa, sem se importar com a música e a filosofia? Em primeiro lugar, o sentimento das suas forças não o enche de orgulho e coragem e não se toma mais intrépido do que era?
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — Mas, se não fizer outra coisa e não mantiver contato com a musa? Ainda que tivesse na alma um certo desejo de aprender, como não participa em nenhuma ciência, em nenhuma pesquisa, em nenhuma discussão nem em nenhum exercício da música, esse desejo toma-se fraco, surdo e cego: não é despertado, nem cultivado, nem liberto dos grilhões das sensações.
Glauco — Assim e.
Sócrates — Ei-lo, pois, já feito inimigo da razão e das musas; já não se serve do discurso para persuadir; alcança em tudo os seus fins pela violência e a selvageria, como um animal feroz, e vive no seio da ignorância e da grosseria, sem harmonia e sem graça.
Glauco — E perfeitamente exato.
Sócrates — Existem na alma dois elementos: a coragem e a sabedoria; um deus, direi eu, deu aos homens duas artes, a música e a ginástica; não as deu para a alma e para o corpo, a não ser acidentalmente, mas para aqueles dois elementos, a fim de que se harmonizem entre si, sendo estendidos ou soltos até ao ponto conveniente.
Glauco — Assim parece.
Sócrates — Aquele, pois, que associa com mais beleza a ginástica à música e, com mais tato, as aplica à sua alma, é músico perfeito e possui a ciência da harmonia muito mais do que aquele que afina entre si as cordas de um instrumento.
Glauco — E com toda a justiça, Sócrates.
Sócrates — Portanto, Glauco, precisaremos também na nossa cidade de um líder capaz de regular esta associação, se quisermos salvar a nossa constituição.
Glauco — Por certo que precisaremos, e muito.
Sócrates — Tal é o nosso plano geral de educação e disciplina da juventude. Seria inútil nos estendermos a respeito das danças dos nossos jovens, as suas caças com ou sem cães as suas competições de ginástica e hípicas. É suficientemente claro que as regras a seguir nisso dependem das que já estabelecemos e não é difícil descobri-las.
Glauco — Certo que não.

A REPÚBLICA – SÓCRATES

A GINÁSTICA NA VISÃO DE SÓCRATES

Sócrates — Depois da música, é pela ginástica que é preciso educar os jovens.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E preciso que por ela se exercitem desde a infância e ao longo da vida. Eis a minha ideia a este respeito: analisa-a comigo. Para mim, não é o corpo, por muito bem constituído que seja, que, por virtude própria, toma pura a alma boa, mas, ao contrário, é a alma que, quando é boa, dá ao corpo, pela sua própria virtude, toda a perfeição de que ele é capaz. Que te parece?
Glauco — O mesmo que te parece.
Sócrates — Se, depois de termos dado à alma todo o cuidado necessário, lhe confiássemos a tarefa de precisar o que se refere ao corpo, limitando-nos a indicar os modelos gerais, a fim de evitarmos longos discursos, não faríamos bem?
Glauco — Certamente.

O REGIME

Sócrates — Proibiremos a embriaguez aos nossos guerreiros, porque a um defensor da cidade, mais do que a qualquer outro, não é possível, estando embriagado, exercer seu mister.
Glauco — Seria ridículo que um guerreiro tivesse necessidade de ser defendido!
Sócrates — E que diremos a respeito da alimentação? Os nossos homens são os atletas da maior das disputas, não é assim?
Glauco — Sim.
Sócrates — É adequado para eles o regime dos atletas comuns?
Glauco — Talvez.
Sócrates — Mas é um regime que dá demasiada margem ao sono e expõe a saúde a muitos perigos. Não vês que esses atletas passam a vida a dormir e que, sempre que se afastam um pouco do regime que lhes foi prescrito, contraem graves doenças?
Glauco — Sim.
Sócrates — E necessário um regime mais apurado para os nossos atletas guerreiros, para que se mantenham, como os cães, sempre alerta, vejam e ouçam com a maior acuidade e, embora mudando frequentemente de bebida e comida, conservem uma excelente saúde.
Glauco — Sou da mesma opinião.
Sócrates — Pois a melhor ginástica não é irmã da música simples de que falávamos há pouco?
Glauco — Que queres dizer?
Sócrates — Que uma boa ginástica é simples, principalmente quando se destina a guerreiros.
Glauco — E em que consiste ela?
Sócrates — Pode-se aprendê-lo em Homero. Sabes que, quando faz os seus soldados comerem em campanha, não os farta de peixes, apesar de estarem próximos do mar, junto ao Helesponto, nem de carnes preparadas, mas apenas de carnes assadas, de preparação muito simples para os seus soldados; com efeito, é mais fácil assar diretamente no fogo do que levar consigo utensílios de cozinha.
Glauco — Sim, com certeza.
Sócrates — Não parece também que Homero se refira a temperos. Os outros atletas não sabem que para se manter em boa forma devem evitar tudo isso?
Glauco — Sabem e evitam.
Sócrates — Se consideras os nossos preceitos acertados, com certeza não aprovas a mesa siracusana e os variados pratos da Sicília.
Glauco — Não.
Sócrates — Também não aprovarás que homens que devem manter-se em boa forma tenham por amante uma jovem de Corinto?
Glauco — Não, por certo.
Sócrates — Nem que se entreguem às famosas delicias da pastelaria ática?
Glauco — Naturalmente.
Sócrates — Se comparássemos uma tal alimentação e um tal regime à melopeia e ao canto em que entram todos os tons e todos os ritmos, julgo que faríamos uma comparação correta.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Aqui, a variedade gera a desordem e o desregramento; ali, provoca a doença. Ao contrário, a simplicidade na música torna a alma moderada e na ginástica, o corpo saudável.
Glauco — Nada de mais certo.

A DESORDEM E AS DOENÇAS

Sócrates — Porém, se o desregramento e as doenças se multiplicarem numa cidade, não se abrirão muitos tribunais e clínicas? A justiça e a medicina serão apreciados quando os homens livres a eles se entregarem em grande número e com entusiasmo.
Glauco — Não poderia ser de outro modo.
Sócrates — E haverá para uma cidade maior prova do vício e da baixeza da educação do que a necessidade de médicos e juizes hábeis, não só para as pessoas rudes e os artesãos, mas também para os que se vangloriam de ter recebido uma educação liberal? Ou vês que não é uma vergonha e uma grande prova de falta de educação ser forçado a recorrer a uma justiça fictícia e tornar os outros senhores e juizes do seu próprio direito, na falta de justiça pessoal?
Glauco — Nada mais vergonhoso.
Sócrates — E não te parece ainda mais vergonhoso quando, não contentes com passarem a maior parte da vida nos tribunais a defender ou a propor processos, as pessoas se vangloriam, por vulgaridade, de ser hábeis em cometer a injustiça, em poder usar todos os subterfúgios, escapar de todas as maneiras e dobrar-se como o vime, para evitar o castigo? E isso, por interesses mesquinhos e desprezíveis, porque não sabem quanto é mais belo e melhor ordenar a vida de modo a não ter necessidade de um juiz?
Glauco — Isso, isso é ainda mais vergonhoso.

A MEDICINA

Sócrates — E acaso será menos vergonhoso recorrer à arte do médico, não para feridas ou para alguma dessas doenças próprias das estações, mas porque, devido à preguiça e ao regime que descrevemos, fica-se cheio de emanações e vapores como um pântano, obrigando os discípulos de Esculápio a dar a essas doenças os novos nomes de flatulências e catarros?
Glauco — Esses são, de fato, nomes de doenças novas e estranhas.
Sócrates — E desconhecidas, ao que parece, no tempo de Esculápio. O que me leva a supor que os seus filhos, em Tróia, não censuraram a mulher que, para curar os ferimentos de Eurípio, obrigou-o a beber vinho pramniano misturado com farinha de cevada e queijo ralado, o que parece inflamatório, assim como não desaprovaram o remédio de Pátrodo.
Glauco — Estranho, entretanto, que se desse uma beberagem tão inusitada para um homem naquele estado.
Sócrates — Não acharás estranho se refletires que a medicina atual, que segue as enfermidades passo a passo, não foi praticada pelos discípulos de Esculápio antes da época de Heródico. Heródico era pedótrofo; tendo se tornado valetudinário, criou uma mescla de ginástica com medicina, que serviu primeiro para atormentá-lo e, depois dele, a muitos outros.
Glauco — Como assim?
Sócrates — Procurando para si uma morte lenta. Porque, como a sua moléstia era mortal, seguiu-a passo a passo, sem conseguir, julgo eu, curá-la; renunciando a qualquer outra ocupação, passou a vida a tratar-se, devorado de inquietação sempre que se afastava um pouco do regime habitual; deste modo, levando uma vida langorosa, chegou à velhice à força de engenho.
Glauco — Belo serviço prestou-lhe a sua arte!
Sócrates — Bem o merecia ele por não ter compreendido que, se Esculápio não ensinou esta espécie de medicina aos seus descendentes, não foi nem por ignorância nem por inexperiência, mas porque sabia que, numa cidade bem governada, cada um tem uma tarefa fixada que é obrigado a desempenhar e ninguém tem tempo para passar a vida doente e a tratar-se. Sentimos o ridículo deste abuso nos artesãos, mas não o sentimos nos ricos e nos que se consideram felizes.
Glauco — Como?
Sócrates — Quando um carpinteiro fica doente, pede ao médico que lhe dê um remédio que, por vomitório ou purga, evacue a sua doença ou então que lhe faça uma cauterização ou uma incisão que o liberte dela. Mas, se alguém lhe prescrever um longo regime, com ligaduras em volta da cabeça e o que se segue, diz logo que não tem tempo para estar doente, que não vê nenhuma vantagem em viver assim, ocupando-se unicamente da sua doença e desprezando o trabalho que tem diante de si. Em seguida, manda embora o médico e, retomando o regime habitual, recupera a saúde e vive exercendo o seu oficio; ou então, se o seu corpo não resiste à enfermidade, vem a morte libertá-lo.
Glauco — E essa a medicina que parece convir a tal homem.
Sócrates — Não é porque tem um oficio e, se não o exercer, não encontra nenhuma vantagem em viver?
Glauco — Evidentemente.
Sócrates — Ao passo que o rico, conforme dizemos, não tem trabalho de que não possa abster-se sem que a vida lhe seja insuportável.
Glauco — Assim é, de fato.
Sócrates — Não conheces a máxima de Focilides: deve-se praticar a virtude quando se tem com que viver?
Glauco — Penso que também se deve praticá-la mesmo antes de ter com que viver.
Sócrates — Não discutimos a verdade desta máxima; mas vejamos por nós mesmos se o rico deve praticar a virtude e se lhe é impossível viver sem ela ou se a mania de alimentar as doenças, que impede o carpinteiro e os outros artesãos de se entregarem ao seu ofício, não impede também o rico de cumprir o preceito de Focilides.
Glauco — Não há dúvida de que o impede, por Zeus! E nada talvez o impeça tanto como esse cuidado excessivo do corpo, que vai além do que admite a ginástica; com efeito, é incômodo nos assuntos domésticos, nas expedições militares e nos empregos sedentários da cidade.
Sócrates — Mas o seu principal inconveniente está em tornar difícil qualquer estudo, qualquer reflexão ou meditação interior. Com efeito, temem-se sempre dores de cabeça e vertigens, que se imputam à filosofia; assim, esse cuidado, onde quer que se encontre, entrava o exercício e a provação da virtude, porque faz que as pessoas continuem a julgar que estão doentes e não cessem de queixar-se da sua saúde.
Glauco — Isso é muito comum.
Sócrates — Esculápio o sabia e foi para os homens que têm, pela natureza e o regime que seguem, uma boa constituição, mas sofrem de uma doença localizada, que ele inventou a medicina. Libertou-os das doenças mediante remédios e indicações, ordenando-lhes ao mesmo tempo que não mudassem em nada o seu regime habitual, a fim de não prejudicarem os negócios da cidade. Quanto aos indivíduos inteiramente minados pela doença, não tentou prolongar-lhes a miserável vida por meio de um lento tratamento de infusões e purgas e pô-los em condições de engendrar filhos destinados, provavelmente, a parecer-se com eles; não pensou que fosse necessário tratar um homem incapaz de viver no círculo de deveres que lhe é fixado, porque daí não é vantajoso nem para o doente nem para a cidade.
Glauco — Fazes de Esculápio um político.
Sócrates — Era-o evidentemente. Não vês que os seus filhos, ao mesmo tempo que combatiam valentemente diante de Tróia, exerciam a medicina como eu digo? Não te lembras que, quando Menelau foi atingido por uma flecha de Pandaro, sugaram o sangue da ferida e verteram-lhe em cima remédios calmantes, sem lhe prescreverem, tal como a Eurípio, o que devia beber ou comer depois? Sabiam que estes remédios bastavam para curar homens que, antes dos seus ferimentos, estavam sãos e cumpriam o seu regime, ainda que tivessem bebido naquele mesmo instante a beberagem de que falamos; quanto ao indivíduo enfermiço por natureza e incontinente, não pensavam que houvesse vantagem, para ele ou para os outros, em prolongar-lhe a vida, nem que a arte médica fosse feita em sua intenção, nem que fossem obrigados a tratá-los, ainda que fosse mais rico do que Midas.
Glauco — Coisas maravilhosas dizes dos filhos de Esculápio!
Sócrates — E não digo que não deva ser assim. Contudo, os poetas trágicos e Píndaro não compartilham da nossa opinião. Pretendem que Esculápio era filho de Apoio e que se deixou persuadir, a peso de ouro, a curar um homem rico atingido por uma doença mortal, pelo que foi ferido pelo raio. Quanto a nós, de acordo com o que dissemos atrás, não acreditamos simultaneamente nestas duas asserções: se Esculápio era filho de um deus, não podia ser ávido de lucros vergonhosos; e, se era ávido de um lucro sórdido, não era filho de um deus.

OS BONS JUÍZES E OS BONS MÉDICOS

Glauco — Tens toda a razão, Sócrates. Mas devemos ter bons médicos na cidade? Ora, os bons médicos são, principalmente, os que trataram o maior número de indivíduos saudáveis e não saudáveis; da mesma maneira, os bons juizes são os que têm convivido com homens de todos os caracteres?
Sócrates — Sem dúvida que são necessários bons juizes e bons médicos. Mas sabes quais são os que considero como tais?
Glauco — Sabe-lo-ei se me disseres.
Sócrates — E o que vou fazer; mas incluíste na mesma pergunta duas coisas diferentes.
Glauco — Como assim?
Sócrates — Os médicos mais hábeis seriam os que, começando logo na infância a aprender a sua arte, tivessem tratado o maior número de corpos e os mais doentes, e que, não sendo eles próprios de uma compleição saudável, tivessem sofrido todas as doenças. Pois, não curam, penso eu, o corpo pelo corpo — caso contrário, não conviria que fossem ou viessem a ser doentes —, mas o corpo pela alma, e a alma que foi ou está doente não pode ela própria tratar bem um mal, seja ele qual for.
Glauco — É verdade.
Sócrates — Mas o juiz, meu amigo, ainda que tenha de governar a alma de outrem pela sua, não tem necessidade de andar na companhia das almas perversas, nem que tenha percorrido a série de todos os crimes, com o único fim de poder, com acuidade, conjeturar por si mesma os crimes dos outros, como o médico conjetura as doenças do corpo; ao contrário, é preciso que se tenha mantido ignorante e pura do vício, se se quer que julgue corretamente o que é justo. Eis por que motivo as pessoas honradas se mostram simples na sua juventude e são facilmente enganadas pelos maus, visto que não há nelas modelos de sentimentos semelhantes aos dos perversos.
Glauco — A verdade é que se deixam seduzir amiúde.
Sócrates — Assim sendo, não convém que um juiz seja jovem, mas velho; é preciso que tenha aprendido tarde o que é a injustiça, que a tenha conhecido sem alojá-la em sua alma, mas estudando-a longamente, como uma estranha, na alma dos outros, e que a ciência, e não a sua própria experiência, lhe faça sentir claramente o mal que ela constitui.
Glauco — Um homem assim seria o verdadeiro juiz.
Sócrates — E mais: seria o bom juiz tal como tu o pedias, dado que quem tem a alma boa é bom. Quanto ao homem hábil e desconfiado, que cometeu muitas injustiças e se julga esperto e sábio, dá provas, certamente, de consumada prudência quando trata com os seus semelhantes, porque se refere aos modelos dos vícios que alojava dentro de si; mas, quando se encontra com gente já muito avançada em idade, revela-se tolo, incrédulo a despropósito, ignorante do que é um caráter são, porque não possui este modelo dentro de si. Contudo, como trata mais com os perversos do que com os honestos, passa mais por sábio do que por ignorante aos seus olhos e aos dos outros.
Glauco — É verdade.
Sócrates — Não é, pois, neste homem que devemos procurar o juiz bom e sábio, mas no primeiro. Com efeito, a perversidade não poderia conhecer-se a si mesma e conhecer a virtude, ao passo que a virtude de uma natureza cultivada pela educação conseguirá, com o tempo, conhecer-se a si mesma e conhecer o vício. Em minha opinião, pois, a verdadeira prudência é própria do homem virtuoso e não do mau.
Glauco — Sou do teu parecer.
Sócrates — Por consequência, estabelecerás em nossa cidade médicos e juizes tais como os descrevemos, para tratarem os cidadãos que são bem constituídos de corpo e alma; quanto aos outros, deixaremos morrer os que têm o corpo enfermiço; os que têm a alma perversa por natureza e incorrigível serão condenados à morte.
Glauco — E o que de melhor há a fazer com tais pessoas para o bem da cidade.
Sócrates — E também evidente que os nossos jovens se precaverão de ter necessidade de juízes se cultivarem essa música simples que, dizíamos nós, engendra a temperança.
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — E, se seguir as mesmas regras da ginástica, o músico que a pratica conseguirá dispensar o médico, exceto nos casos de urgência?
Glauco — Creio que sim.
Sócrates — Nos exercícios e trabalhos, propor-se-á estimular a parte generosa da sua alma, de preferência a aumentar a sua força, e, como os outros atletas, não regulará a sua alimentação e os seus esforços com vista ao vigor corporal.
Glauco — Muito bem.

A REPÚBLICA – PLATÃO

Obs.: títulos e subtítulos meus.

O CARÁTER DO CANTO E DA MELODIA NA ANÁLISE DE SÓCRATES

A melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo.

Sócrates — Resta-nos tratar do caráter do canto e da melodia, concordas?
Adimanto — Sim, evidentemente.
Sócrates — Haveria alguém que não dissesse, de pronto, o que devemos dizer acerca deles e o que devem ser, se nos quisermos manter de acordo com as ideias precedentes?
Então, Glauco, sorrindo, disse:
— Por mim, Sócrates, corro o risco de ser a exceção, porque não estou muito em condições de inferir, neste momento, o que devem ser essas coisas; no entanto, suspeito-o.
Sócrates — Estás ao menos em condições de fazer esta primeira observação, que a melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo.
Glauco — Quanto a isso, sim.
Sócrates — Quanto às palavras, diferem das que não são cantadas? Não devem ser compostas segundo as regras que enunciamos há pouco e de forma semelhante?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E a harmonia e o ritmo devem corresponder às palavras?
Glauco — Sim.
Sócrates — Já dissemos que não deveriam existir queixas e lamentações nos nossos discursos.
Glauco — Com efeito, por serem desnecessárias.
Sócrates — Quais são as harmonias plangentes? Diz-nos, visto que és músico.
Glauco — São a lídia mista, a aguda e outras semelhantes.
Sócrates — Convém, pois, suprimi-las, não é verdade? Porque são inúteis para as mulheres honradas e, com maior razão, para os homens.
Glauco — Certamente.
Sócrates — Nada há mais inconveniente para os guardiães do que a embriaguez, a moleza e a indolência.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Quais são harmonias efeminadas usadas nos banquetes?
Glauco — A jânica e a lídia que se denominam harmonias lassas.
Sócrates — De tais harmonias, meu amigo, tu te servirás para formar guerreiros?
Glauco — De maneira nenhuma. Receio que não te restem senão a dórica e a frígia.
Sócrates — Não conheço todas as harmonias, mas deixa-nos aquela que imita os tons e as entonações de um valente empenhado em batalha ou em qualquer outra ação violenta, quando, por infortúnio, corre ao encontro dos ferimentos, da morte ou é atingido por outra infelicidade, e, em todas essas circunstâncias, firme no seu posto e resoluto, repele os ataques do destino. Deixa-nos outra harmonia para imitar o homem empenhado numa ação pacífica, não violenta mas voluntária, que procura persuadir, para obter o que pede, quer um deus por intermédio de suas preces, quer um homem por intermédio das suas lições e conselhos, ou, ao contrário, solicitado, ensinado, convencido, se submete a outro e, tendo por estes meios sido bem-sucedido, não se enche de orgulho, mas se comporta em todas as circunstâncias com sabedoria e moderação, feliz com o que lhe acontece. Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitarão com mais beleza as entonações dos infelizes, dos felizes, dos sábios e dos valentes, estas deixa-as ficar.
Glauco — As harmonias que me pedes para deixar não são senão aquelas que mencionei há pouco.
Sócrates — Não precisaremos pois, para os nossos cantos e as nossas melodias, de instrumentos com muitas cordas, que reproduzem todas as harmonias.
Glauco — Não, por certo.
Sócrates — Nem tampouco precisaremos de fabricantes de triângulos, pedis e outros instrumentos de muitas cordas e harmonias.
Glauco — Não, aparentemente.
Sócrates — Admitirás em nossa cidade os fabricantes e os tocadores de flauta? Não é este instrumento que pode emitir mais sons, e os instrumentos que reproduzem todas as harmonias não são imitações da flauta?
Glauco — E evidente.
Sócrates — Assim, restam a lira e a citara, úteis à cidade; nos campos, os pastores terão o pífaro.
Glauco — E o que se infere do nosso raciocínio.
Sócrates — De resto, meu amigo, não inovamos ao preferirmos Apolo e os instrumentos de Apoio a Mársias e seus instrumentos.
Glauco — Não, por Zeus! Não creio que estejamos inovando.
Sócrates — Mas, pelo cão! Sem nos darmos conta disso, purificamos a cidade que ainda há pouco dizíamos mergulhada na languidez.
Glauco — E o fizemos sabiamente.

A REPÚBLICA – PLATÃO

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O senhor de si mesmo – segundo Sócrates

Sócrates — Que faríamos para encontrar a justiça sem nos ocuparmos da temperança?
Glauco — Não sei, mas gostaria que ela não se apresentasse antes de examinarmos a temperança. Se queres me agradar, começa por analisar esta última.
Sócrates — Seria um erro recusar te agradar.
Glauco — Examina, pois.
Sócrates — E o que passo a fazer. Em verdade, ela se assemelha, mais do que as virtudes precedentes, a um acordo e a uma harmonia.
Glauco — Como assim?
Sócrates — A temperança, outra coisa não é que um domínio que se exerce sobre certos prazeres e paixões, como o indica — de uma forma que não considero exagerada — a expressão comum “senhor de si mesmo” e outras semelhantes, que são, por assim dizer, vestígios desta virtude. Não te parece?
Glauco — Certamente.
Sócrates — Mas a expressão “senhor de si mesmo” não é ridícula? Aquele que é senhor de si mesmo é também, acredito, escravo de si mesmo, e aquele que é escravo, é também senhor, porque ambas as expressões se referem à mesma pessoa.
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — Esta expressão parece-me querer dizer que existem duas partes na alma humana: uma superior em qualidade e outra inferior; quando a superior comanda a inferior, diz-se que é o homem senhor de si mesmo — o que é, sem dúvida, um elogio; mas quando, devido a uma má educação ou a uma má frequência, a parte superior, que é menor, é dominada pela massa dos elementos que compõem a inferior, censura-se este domínio como vergonhoso e diz-se que o homem em semelhante estado é escravo de si mesmo e corrupto.
Glauco — Parece-me sensata essa explicação.
Sócrates — Atenta agora para a nossa jovem cidade; verás uma dessas condições realizada e dirás que é com razão que se lhe chama senhora de si mesma, admitindo que se deve chamar moderado e senhor de si mesmo a tudo aquilo em que a parte superior comanda a inferior.
Glauco — Atento e vejo que falas verdade.
Sócrates — É claro que também descobrirás nela, em grande número e feitio, paixões, prazeres e dores, sobretudo nas crianças, nas mulheres, nos escravos e na turba de homens de baixa condição que são considerados livres.
Glauco — Sim, sem dúvida.
Sócrates — Porém, quanto aos sentimentos simples e moderados que o raciocínio dirige e que acompanham a inteligência e a reta opinião, só os encontrarás em raras pessoas, aquelas que, dotadas de excelente caráter, foram formadas por uma excelente educação.
Glauco — É verdade.
Sócrates — Não percebes também que, na tua cidade, os desejosa turba dos homens de baixa condição são dominados pelos desejo e pela sabedoria do número menor dos homens virtuosos?
Glauco — Percebo.
Sócrates — Se é possível dizer de uma cidade que é senhora dos seus prazeres, das suas paixões e de si mesma, é desta que é preciso dizê-lo.
Glauco — Não há dúvida.
Sócrates — E, por isso mesmo, pode-se concluir que ela possui temperança, não?
Glauco — Com toda a certeza.
Sócrates — E se, em qualquer outra cidade, os governantes têm a mesma opinião a respeito dos que devem mandar, na nossa cidade também residirá esse acordo, não é assim?
Glauco — Claro.
Sócrates — Ótimo! E quando os cidadãos alojam tais disposições, em quem dirias que se encontra a moderação: nos governantes ou nos governados?
Glauco — Em uns e em outros.
Sócrates — Vês que era bem fundada nossa conjectura, quando dizíamos que a moderação se assemelha a uma harmonia.
Glauco — Por que razão?
Sócrates — Porque não se dá com ela o mesmo que com a coragem e a sabedoria, que, residindo respectivamente numa parte da cidade, tornam esta corajosa e sábia. A moderação não atua assim: espalhada no conjunto do Estado, põe em uníssono da oitava os mais fracos, os mais fortes e os intermédios, sob a relação da sabedoria, se quiseres, da força, se também quiseres, do número, das riquezas ou de qualquer outra coisa semelhantes. De sorte que podemos dizer, com toda a razão, que a moderação consiste nessa concórdia, harmonia natural entre o superior e o inferior quanto à questão de saber quem deve mandar, tanto na cidade como no indivíduo.
Glauco — Estou de pleno acordo contigo.
Sócrates — Temos assim três virtudes que foram descobertas na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade também participa na virtude, que poderá ser? E evidente que é a justiça.

A REPÚBLICA – PLATÃO

Adimanto discursa a Sócrates sobre a justiça e a injustiça

— Acreditas, Sócrates, que a questão foi suficientemente desenvolvida?
Sócrates — E por que não?
Adimanto — O ponto essencial foi omitido.
Sócrates — Pois bem! De acordo com o provérbio, que o irmão socorra o irmão! Se Glauco esqueceu algum ponto, ajuda-o. No entanto, ele disse o suficiente para me pôr fora de combate e na impossibilidade de defender a justiça.
Adimanto — Desculpa inútil. Ouve mais isto. Com efeito, é preciso que eu exponha a tese contrária à que Glauco defendeu, a tese daqueles que elogiam a justiça e censuram a injustiça. Ora, os pais recomendam aos filhos que sejam justos e assim fazem todos os que são responsáveis por almas, elogiando não a justiça em si mesma, mas a reputação que ela acarreta, a fim de que aquele que parece justo consiga, por causa dessa reputação, os cargos, as alianças e todas as outras vantagens que Glauco enumerou como ligadas a uma boa fama. E essas pessoas levam ainda mais longe os benefícios da aparência. Falam como o bom Hesíodo e Homero. Com efeito, o primeiro diz que, para os justos, os deuses fazem com que:

Os carvalhos carreguem bolotas nos altos ramos
e abelhas no tronco;
acrescenta que, para eles,
as ovelhas se dobram ao peso do velo.

E que tenham muitos outros bens semelhantes. O segundo utiliza mais ou menos a mesma linguagem. Fala de alguém como:

de um rei irrepreensível que, temendo os deuses,
observa a justiça; e para ele, a terra negra produz
trigo e cevada, árvores vergadas sob o peso dos frutos;
o rebanho cresce e o mar oferece os seus peixes.

Museu e seu filho, da parte dos deuses, concedem aos justos recompensas ainda maiores. Conduzindo-os aos Campos Elísios, introduzem-nos no banquete dos virtuosos, onde, coroados de flores, os fazem passar o tempo a embriagar-se, como se a mais bela recompensa da virtude fosse uma embriaguez eterna. Outros prolongam as recompensas concedidas pelos deuses; dizem, com efeito, que o homem piedoso e fiel aos seus juramentos revive nos filhos dos seus filhos e na sua posteridade. E assim, e em termos parecidos, que fazem o elogio da justiça. Quanto aos ímpios e injustos, mergulham-nos na lama do Hades e os condenam a transportar água num crivo; durante a vida, os condenam à infâmia, e todos esses castigos que Glauco enumerou a propósito dos justos que parecem injustos são aplicados aos maus; não conhecem outros. Tal é a sua maneira de elogiar a justiça e censurar a injustiça.

Além disso, Sócrates, ouve outra concepção da justiça e da injustiça desenvolvida pelo povo e pelos poetas. Todos são unânimes em celebrar como boas a temperança e a justiça, mas as consideram difíceis e penosas; a intemperança e a injustiça, ao contrário, parecem-lhes agradáveis e de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei; as ações injustas, dizem eles, são mais proveitosas do que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros. Mas, de todos estes discursos, os mais estranhos são os que fazem acerca dos deuses e da virtude. Os próprios deuses, dizem eles, reservaram muitas vezes aos homens virtuosos o infortúnio e uma vida miserável, ao passo que concediam aos maus a sorte contrária. Por seu lado, sacerdotes mendigas e adivinhos vão às podas dos ricos e os convencem de que obtiveram dos deuses o poder de reparar as faltas que eles ou os seus antepassados cometeram, por meio de sacrifícios e encantamentos, com acompanhamento de prazeres e festas; se se quer prejudicar um inimigo por uma módica quantia, pode-se causar dano tanto ao justo como ao injusto, por intermédio das suas evocações e fórmulas mágicas, dado que, segundo afirmam, convencem os deuses a se colocarem a seu serviço. Em apoio a todas essas assertivas, invocam o testemunho dos poetas. Uns falam da facilidade do vício:

Para o mal em bandos nos encaminhamos
facilmente: o caminho é suave e ele mora pato;
mas diante da virtude os deuses colocaram suor e trabalho.

Os outros, para provar que os homens podem influenciar os deuses, alegam estes, vemos de Homero:

Os próprios deuses deixam-se dobrar;
e, pelo sacrifício e devota prece,
as libações e das vítimas a fumaça,
o homem aplaca-lhes a ira
quando infringiu as suas leis e pecou.

E produzem grande quantidade de livros de Museu e Orfeu, descendentes, dizem eles, de Selene e das Musas. Regulam os seus sacrifícios por esses livros e convencem nao apenas os simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios. Estas práticas os livram dos males do outro mundo, mas, se as desprezarmos, esperam-nos terríveis suplícios.

Todos estes discursos, amigo Sócrates, e muitos outros que se fazem sobre a virtude, o vício e a estima que lhes dedicam os homens e os deuses, que efeito cremos que produzem na alma do jovem dotado de bom caráter que os ouve e é capaz, saltando de uma opinião para outra, de extrair daí uma resposta a esta pergunta: o que se deve ser e que caminho se deve seguir para atravessar a vida da melhor maneira possível? É provável que diga a si próprio, com Píndaro: Escalarei, pela justiça ou por tortuosos ardis, uma muralha mais alta, para aí me consolidar e passar a minha vida? Conforme aquilo que se diz, se eu for justo sem o parecer, não tirarei disso nenhum proveito, mas sim aborrecimentos e prejuízos evidentes; se eu for injusto, mas gozando de uma reputação de justiça, dirão que levo uma vida divina.
Portanto, visto que a aparência, como o demonstram os sábios, violenta a verdade e é senhora da felicidade, para ela devo tender inteiramente. Como fachada e cenário, devo criar ao meu redor uma imagem de virtude e imitar a raposa do muito sábio Arquiloco, animal astuto e rico em artimanhas. “Mas”, dir-se-á, “não é fácil esconder-se sempre quando se é mau”. Realmente, não, responderemos, e também nenhuma grande empresa é fácil; no entanto, se queremos ser felizes, devemos seguir o caminho que nos é traçado por esses discursos. Para não sermos descobertos, formaremos associações e sociedades secretas, e existem mestres de persuasão para nos ensinarem a eloquência pública e judiciária; graças a estes auxílios, convencendo aqui, violentando acolá, venceremos sem incorrer em castigo. “Mas”, argumentar-se-á, “não é possível escapar ao olhar dos deuses nem violentá-los.” Se eles não existem ou se não se ocupam dos problemas humanos, devemos preocupar-nos em escapar-lhes? E, se existem e se ocupam de nós, apenas os conhecemos por ouvir dizer e pelas genealogias dos poetas; ora, estes pretendem que são suscetíveis, por meio de sacrifícios, devotas preces ou oferendas, de se deixar dobrar e é preciso acreditar nestas duas coisas ou em nenhuma. Portanto, se é preciso acreditar, seremos injustos e lhes ofereceremos sacrifícios com o produto das nossas injustiças. Com efeito, se fôssemos justos, estaríamos isentos de castigo por eles, mas renunciaríamos aos benefícios da injustiça; ao contrário, sendo injustos, teremos esses benefícios e, por intermédio de preces, escaparemos ao castigo das nossas faltas e dos nossos pecados. “Mas no Hades”, dir-se-á, “sofreremos as penas das injustiças cometidas neste mundo, nós ou os filhos dos nossos filhos.” Mas, meu amigo, responderá o homem que raciocina, os mistérios podem muito, assim como os deuses libertadores, a crer nas grandes cidades e nos filhos dos deuses, poetas e profetas, que nos revelam estas verdades.

Por que motivo havemos de continuar a preferir a justiça à extrema injustiça, que, se a praticarmos com fingida honestidade, nos permitirá triunfar junto dos deuses e junto dos homens, durante a vida e depois da morte, como o afirmam a maior parte das autoridades e as mais eminentes? Depois do que foi dito, será ainda possível, Sócrates, consentir em honrar a justiça quando se dispõe de alguma superioridade, de alma ou de corpo, de riquezas ou de nascimento, e não rir ao ouvi-la louvar? Deste modo, se alguém estiver em condições de provar que mentimos e de se dar suficientemente conta de que a justiça é o melhor dos bens, será indulgente e não se encolerizará contra os homens injustos; sabe que, exceto aqueles que, sendo de natureza divina, sentem aversão pela injustiça, e aqueles que se abstêm porque receberam as luzes da ciência, ninguém é justo por vontade própria, mas que é apenas a covardia, a idade ou qualquer outra fraqueza que leva a censurar a injustiça, quando se é incapaz de a cometer. A prova é clara: com efeito, entre as pessoas que estão neste caso, a primeira que receber o poder de ser injusto será a primeira a usá-lo, na medida das suas possibilidades. E tudo isto não tem outra causa senão a que nos empenhou, ao meu irmão e a mim, nesta discussão, Sócrates, para te dizermos: “Ó admirável amigo, entre vós todos que pretendeis ser os defensores da justiça, a começar pelos heróis dos primeiros tempos cujos discursos chegaram até nós, ainda ninguém censurou a injustiça nem tampouco louvou a justiça de outro modo, exceto pela reputação, pelas honras e recompensas que a elas estão vinculadas; quanto ao fato de estarem uma e outra, por seu próprio poder, na alma que as possui, ocultas aos deuses e aos homens, ninguém, quer em verso, quer em prosa, jamais demonstrou suficientemente que uma é o maior dos males do espírito e a outra, a justiça, o seu maior bem. Com efeito, se nos falassem todos assim desde o começo e se, desde a infância, nos convencessem desta verdade, não precisaríamos nos defender mutuamente da injustiça, mas cada um de nós seria o melhor guarda de si mesmo, por causa do temor de, se fosse injusto, coabitar com o maior dos males”.

Tudo isso, Sócrates, e talvez mais, Trasímaco ou qualquer outro poderia dizê-lo a respeito da justiça e da injustiça, invertendo os seus respectivos poderes de forma deplorável, parece-me. Quanto a mim — pois não quero esconder-te nada —, foi com o desejo de te ouvir sustentar a tese contrária que envidei, tanto quanto possível, todos os meus esforços neste discurso. Por isso, não te limites a provar-nos que a justiça é mais forte que a injustiça; mostra-nos os efeitos que cada uma produz por si mesma na alma onde se encontra e que fazem que uma seja um bem e a outra, um mal. Coloca de lado as reputações que nos proporcionam, como te aconselhou Glauco. Se, com efeito, não colocares de lado, de um e de outro lado, as verdadeiras reputações e lhes adicionares as falsas, diremos que não aprecias a justiça, mas a aparência, que não censuras a injustiça, mas a aparência, que recomendas ao homem injusto que se esconda e que aceitas, da mesma forma que Trasímaco, que a justiça é um bem alheio, vantajoso para o mais forte, enquanto a injustiça é útil e vantajosa a si mesma, mas nociva ao mais fraco.

Dado que reconheceste que a justiça pertence à classe dos maiores bens, aqueles que devem ser procurados pelas suas consequências e muito mais por eles mesmos, como a visão, a audição, a razão, a saúde e todas as coisas que são verdadeiros bens devido à sua natureza e não segundo a opinião, louva, portanto, na justiça o que ela tem em si mesma de vantajoso para aquele que a possui e condena na injustiça o que ela tem de prejudicial; quanto às recompensas e à reputação, deixa que outros as louvem. Eu, do meu lado, aceitaria que outro louvasse a justiça e condenasse a injustiça desta maneira, elogiando e condenando a reputação e as recompensas que acarretam, mas não aceitarei que tu o faças, a não ser que me ordenes, visto que passaste toda a tua vida a analisar esta única questão. Não te contentes, pois, em provar-nos que a justiça é mais poderosa que a injustiça, mas demonstra-nos também, pelas consequências que cada uma delas produz em seu possuidor, ignoradas ou não pelos deuses e pelos homens, que uma é um bem e a outra, um mal.

PLATÃO – A REPÚBLICA – livro II

Glauco elogia a vida do injusto pretendendo ouvir Sócrates censurá-la e elogiar a justiça

Ainda não ouvi ninguém falar da justiça e da sua superioridade sobre a injustiça como o desejaria: gostaria de ouvir sendo elogiada em si mesma e por ela mesma. E é principalmente de ti que espero esse elogio. E por isso que, aplicando todas as minhas forças, elogiarei a vida do injusto e, ao fazê-lo, mostrarei de que maneira pretendo que censures a injustiça e elogies a justiça.

Começarei por dizer o que geralmente se entende por justiça e qual é a sua origem; em segundo lugar, que aqueles que a praticam não o fazem por vontade própria, por considerá-la uma coisa necessária, e não um bem; em terceiro lugar, que têm razão para agirem assim, dado que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo, como afirmam. Quanto a mim, Sócrates, não compartilho esta opinião. No entanto, sinto-me embaraçado, pois tenho os ouvidos cheios dos argumentos de Trasímaco e mil outros. Ainda não ouvi ninguém falar da justiça e da sua superioridade sobre a injustiça como o desejaria: gostaria de ouvir sendo elogiada em si mesma e por ela mesma. E é principalmente de ti que espero esse elogio. E por isso que, aplicando todas as minhas forças, elogiarei a vida do injusto e, ao fazê-lo, mostrarei de que maneira pretendo que censures a injustiça e elogies a justiça.

O que geralmente se entende por justiça e qual é a sua origem

Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. É esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — sofrê-la quando se é incapaz de vingança. Entre estes dois extremos, a justiça é apreciada não como um bem em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça lhe dá valor. Com efeito, aquele que pode praticar esta última jamais se entenderá com ninguém para se abster de cometê-la ou sofrê-la, porque seria louco. É esta, Sócrates, a natureza da justiça e a sua origem, segundo a opinião comum.

Aqueles que a praticam não o fazem por vontade própria, por considerá-la uma coisa necessária, e não um bem

Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça é o que compreenderemos bem se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamos-los e observemos até onde o desejo leva a um e a outro. Apanharemos o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é isso que a natureza toda procura como um bem, mas que, por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio. Este homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que  falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível. Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citar-se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto.

Eles têm razão por agirem assim, dado que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo

Agora, para fazermos um juízo da vida dos dois homens aos quais nos referimos, confrontemos o mais justo com o mais injusto e estaremos em condição de julgá-los bem; de outro modo não o conseguiríamos. Mas como estabelecer esta confrontação? Assim: não tiremos nada ao injusto da sua injustiça nem ao justo da sua justiça, mas consideremo-los perfeitos, cada um em sua modalidade de vida. Em primeiro lugar, que o injusto aja como os artesãos hábeis — como o piloto experiente, ou o médico, distingue na sua arte o impossível do possível, empreende isto e abandona aquilo; se se engana em algum ponto, é capaz de corrigir o erro —, tal como o injusto se dissimula habilmente quando realiza alguma má ação, se quer ser superior na injustiça. Daquele que se deixa apanhar deve-se fazer pouco caso, porque a extrema injustiça consiste em parecer justo não o sendo. Portanto, deve-se conceder ao homem perfeitamente injusto a perfeita injustiça, não suprimir nada e permitir que, cometendo os atos mais injustos, retire deles a maior reputação de justiça; que, quando se engana em alguma coisa, é capaz de corrigir o erro, de falar com eloquência para se justificar se um dos seus crimes for denunciado, e usar de violência nos casos em que a violência for necessária, ajudado pela sua coragem, o seu vigor e os seus recursos em amigos e dinheiro. Diante de tal personagem coloquemos o justo, homem simples e generoso, que quer, de acordo com Esquilo, não parecer, mas ser bom. Tiremos-lhe esta aparência. Se, com efeito, parecer justo, receberá, como tal, honrarias e recompensas; saber-se-á então se é pela justiça ou pelas honrarias e as recompensas que ele é assim. Para isso, é preciso despojá-lo de tudo, exceto de justiça, e fazer dele o oposto do anterior. Sem que cometa ato injusto, que tenha a maior reputação de injustiça, a fim de que a sua virtude seja posta à prova, não se deixando enfraquecer por uma má fama e suas consequências; que se mantenha inabalável até a morte, parecendo injusto durante a vida toda, mas sendo justo, a fim de que, chegando ambos aos extremos, um da justiça, outro da injustiça, possamos julgar qual é o mais feliz.

Sócrates — Oh, meu caro Glauco! Com que energia estás limpando, tal qual estátuas, esses dois homens, para os submeteres ao nosso julgamento!

Glauco — Faço o melhor que posso. Agora, se eles são como acabo de os apresentar, julgo não ser difícil descrever o gênero de vida que os espera. Portanto, digamo-lo; e, se esta linguagem for demasiado rude, lembra-te, Sócrates, que não sou eu quem fala, mas aqueles que situam a injustiça acima da justiça. Eles dirão que o justo, tal como o representei, será açoitado, torturado, acorrentado, terá os olhos queimados, e que, finalmente, tendo sofrido todos os males, será crucificado e saberá que não se deve querer ser justo, mas parecê-lo. Assim, as palavras de Esquilo aplicar-se-iam muito mais exatamente ao injusto; porque, na realidade, dirão: é aquele cujas ações estão de acordo com a verdade e que, não vivendo para as aparências, não quer parecer injusto, mas sê-lo:

“No sulco profundo de seu espírito ele colhe a seara dos felizes projetos.

Em primeiro lugar, governa na sua cidade, graças ao seu aspecto de homem justo; em seguida, arranja mulher onde lhe apraz, constitui associações de prazer ou de negócios com quem lhe agrada e tira proveito de tudo isso, porque não tem escrúpulos em ser injusto. Se entra em conflito, público ou privado, com alguém, prevalece sobre o adversário; por este meio enriquece-se, ajuda os amigos, prejudica os inimigos, oferece aos seus deuses sacrifícios e presentes com prodigalidade e magnificência e concilia, muito melhor que o justo, os deuses e os homens a quem quer agradar, sendo, por conseguinte, mais agradável aos deuses do que o justo. Deste modo, dizem eles, Sócrates, os deuses e os homens proporcionam ao injusto uma vida melhor que ao justo.

A República, Platão, Livro II

Os três tipos de bens que buscamos, segundo Glauco falando a Sócrates em “A República” L II, de Platão

1º tipo de bens

Glauco — Não te parece que existe uma espécie de bens que buscamos não objetivando as suas consequências, mas porque os amamos em si mesmos, como a alegria e os prazeres inofensivos, que, por isso mesmo, não têm outro efeito que não seja o deleite daquele que os possui?

Sócrates — Sim, acredito sinceramente que existem bens dessa espécie.

2º tipo de bens

Glauco — E não existem bens que amamos por si mesmos e também por suas consequências, como o bom senso, a visão, a saúde? Com efeito, tais bens nos são preciosos por ambos os motivos.

Sócrates — Sim.

3º tipo de bens

Glauco — Mas não vês uma terceira espécie de bens como a ginástica, a cura de uma doença, o exercício da arte médica ou de outra profissão lucrativa? Poderíamos dizer destes bens que exigem boa vontade; nós os buscamos não por eles mesmos, mas pelas recompensas e as outras vantagens que proporcionam.

Sócrates — Concordo que essa terceira espécie existe. Mas aonde queres chegar?

Glauco — Em qual dessas espécies tu colocas a justiça?

O melhor dos bens, segundo Sócrates

Sócrates — Na mais bela, creio, na dos bens que, por si mesmos e por suas consequências (2º tipo), deve amar aquele que quer ser plenamente feliz.

O melhor dos bens, na opinião da maioria dos homens

Glauco — Não é a opinião da maioria dos homens, que põem a justiça no nível dos bens penosos que é preciso cultivar pelas recompensas e distinções que proporcionam (3º tipo), mas que devem ser evitados por eles mesmos, porque são difíceis.

Sócrates — Eu sei que é essa a opinião da maioria. E por isso que, desde há muito, Trasímaco censura esses bens e elogia injustiça. Mas, segundo parece, eu tenho a cabeça dura.

Giges, o Lídio – o mito do anel

Glauco, discursando a Sócrates, em certo ponto expõe uma opinião sobre a natureza e a origem da justiça, e sobre aqueles que a praticam: – “Escuta, então, o que eu vou expor-te em primeiro lugar: qual é a natureza e a origem da justiça.”“Aqueles que a praticam, agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça”. Para explicar essa opinião, ele apresenta um mito sobre um homem, teoricamente injusto, chamado Giges, que comete injustiça ao descobrir poderes mágicos. Então Glauco propõe uma suposição sobre o mito afirmando que um homem justo descobrindo os mesmos poderes mágicos praticaria também a mesma injustiça.

Opinião de Glauco sobre a natureza e a origem da justiça

Sócrates — Claro que me convém. Com efeito, de que assunto um homem sensato apreciaria falar e ouvir falar com mais frequência?
Glauco — A tua observação é excelente. Escuta, então, o que eu vou expor-te em primeiro lugar: qual é a natureza e a origem da justiça. Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. E esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — sofrê-la quando se é incapaz de vingança. Entre estes dois extremos, a justiça é apreciada não como um bem em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça lhe dá valor. Com efeito, aquele que pode praticar esta última jamais se entenderá com ninguém para se abster de cometê-la ou sofrê-la, porque seria louco. E esta, Sócrates, a natureza da justiça e a sua origem, segundo a opinião comum. Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça é o que compreenderemos bem se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamo-los e observemos até onde o desejo leva a um e a outro. Apanharemos o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é isso que a natureza toda procura como um bem, mas que, por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio.

Este é o mito descrito por Glauco, segundo Platão em A República II

Este homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível.
Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.

Para ampliar o conhecimento sobre o assunto, tomei a liberdade de acrescentar nesta postagem, parte do artigo Nova interpretação da passagem 359d da República de Platão, de Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes, publicado na Kriterion – Revista de Filosofia, nos critérios da  Licença Creative Commons.

Exposição do Problema

O que queremos atentar com este trabalho é o caráter complexo de Gyges que fez com que se desenvolvessem diversas histórias a seu respeito, sendo a mais famosa aquela que conta a maneira como ele chegou ao poder. Sua fama percorreu o mundo grego influenciando tanto seus contemporâneos como aqueles que posteriormente vieram. A lírica grega desenvolvida entre os séculos VII e VI deixou, nos fragmentos que nos restaram, um precioso tesouro a respeito de Gyges da Lídia, que posteriormente veio a servir de base tanto para os historiadores como para os filósofos que dele falaram.

A primeira fonte que temos a seu respeito é de Arquíloco de Paros, que assim nos fala sobre ele:

ο µοι τ Γύγεω το πολυχρύσου µέλει,
ο
δ’ ελέ πώ µε ζλος, οδ’ γαίοµαι
θε
ν ργα, µεγάλης δ’ οκ ρέω τυραννίδος·
απόπροθεν γάρ
στιν φθαλµν µν.
Não me preocupam as coisas de Gyges, rico em ouro,
Nem ainda me persegue a cobiça, nem invejo
As obras dos deuses, ou amor pela grande tirania;
Isto longe está dos meus olhos.(1)

Arquíloco que viveu entre 680-640 a.C.(2) foi contemporâneo de Gyges, que teria reinado entre 682-644 a.C.(3). Tal fragmento além de ser o primeiro a tratar de Gyges, parece também ter sido o primeiro a utilizar no grego o termo “tirania”. Segundo Ure, a palavra tirania não é grega, mas pode ser de origem lídia(4). Para Adrados, a palavra designa o poder absoluto dos monarcas orientais(5). De acordo com Euphorion (séc. III a.C.), Gyges foi o primeiro a ser chamado de tirano(6). Tal declaração pode ser apenas uma inferência de Hippias de Élis, que disse não ter Homero usado a palavra τύραννος, mas seu uso somente aparece com Arquíloco (FHG, II, fr.7, p.62).

O fr. 19W indica o poder de Gyges, entre riqueza e posses, que faz dele o senhor da Lídia e tirano da Ásia. Apesar de o poema estar na primeira pessoa, sabemos que Arquíloco não se coloca como falante, mas atribui o dito ao personagem Kháron, conforme nos informa Aristóteles:

κα τν Χάρωνα τν τέκτονα ν τ άµβ ο ρχή
ο
µοι τ Γύγεω
e Kháron, o carpinteiro, em iambo, assim começa:
Não a mim as coisas de Gyges(7)

O uso de uma personagem para dizer algo sobre outro é um método original da crítica de Arquíloco. Segundo West argumenta, há um particular tipo de poesia que os antigos chamam de iambo para usar personagens imaginários e situações(8).

Outros poetas líricos anteriores a Heródoto comprovam a historicidade de Gyges sendo estes Alcman (fl. 652 a.C.), Mimnermo (fl. 632 a.C.) e Hipponax (fl. 540 a.C.). É interessante notarmos que Mimnermo compôs versos elegíacos da batalha entre Smyrna contra Gyges e os Lídios, e parece ter escrito uma Smyrneida, infelizmente perdida(9). Também podemos encontrar um poema referente a Anacreonte que muito se parece como o que Arquíloco escreveu a respeito de Gyges:

ο µοι µέλει τ Γύγεω,
το
Σαρδίων νακτος·
ο
δ’ ελέ πώ µε ζλος
ο
δ φθον τυράννοις.
Não me preocupam as coisas de Gyges,
Senhor de Sardis,
Nem me persegue a cobiça,
Nem invejo aos tiranos.(10)

No Greek Anthology, encontramos um poema semelhante atribuído Anacreonte, mudando em sua estrutura as linhas 3 e 4, apesar de manter dentro do fragmento a coerência quanto a riqueza e à tirania:

ο µοι µέλει τ Γύγεω,
το
Σαρδίων νακτος,
ο
θ’ αρέει µε χρυσός,
ο
κ ανέω τυράννους.
Não me preocupam as coisas de Gyges,
Senhor de Sardis,
Nem me captura o ouro,
Nem louvo os tiranos.
(11)

Ressaltamos que o que aqui se diz de Anacreonte foi produzido posteriormente à morte do poeta no período helenístico e atribuído ao poeta de forma pseudepigráfica. Esse material se encontra reunido na obra conhecida como Anacreontea. De qualquer maneira, estes, assim como os demais fragmentos dos outros poetas, demonstram a repercussão do lídio Gyges entre os gregos.

Heródoto nos conta a história de Gyges da seguinte maneira(12): Candaules, o soberano da Lídia, oferece a Gyges, seu guarda pessoal, a permissão para que este veja sua mulher nua e, assim, possa comprovar que ela é a mais bela. Pois, segundo diz Candaules, “os homens confiam menos em seus ouvidos do que em seus olhos”(13) Mesmo dizendo-se persuadido [peíthomai] pelas palavras de Candaules, de que sua mulher é a mais bela, Gyges é obrigado a ver para comprovar tal fato. Escondido atrás da porta do quarto, Gyges vê a rainha nua e quando se preparava para se retirar, acabou sendo visto por ela sem que ele assim percebesse. Entendendo o ocorrido e percebendo que se tratava de obra de Candaules, a rainha nada fala e aguarda. No dia seguinte, a rainha chama Gyges em sua presença e apresenta a este dois caminhos [dyôn hodôn]: ou mata o soberano ou morre(14). Este para evitar a morte escolhe matar o soberano e assim toma para si a mulher e a soberania [gynaíka kaì tèn basileíen].(15)

 

É interessante notarmos que as fontes anteriores a Heródoto são todas líricas, o que demonstra uma tradição entre os poetas líricos de narrar acontecimentos dos quais ouviram falar. A interpretação histórica da passagem 359d, segundo entendemos, deve levar em conta não só Heródoto como também toda essa poesia lírica anterior a este e que afirma a fama de Gyges entre os gregos.

 Uma Nova Interpretação da Passagem

O estudo da passagem escolhida em Platão apresenta uma série de dificuldades, como foi demonstrado através da apresentação das duas interpretações acima. No entanto, para o tratamento da mesma, ambas se demonstraram insuficientes em seus argumentos. Para resolver tal problema propomos uma nova interpretação da passagem, mas antes devemos analisar em que ponto as interpretações anteriores são defectíveis.

Para demonstrar os problemas da interpretação histórica utilizaremos as explicações de Slings(41) sobre a passagem 359d1 e a crítica que faz ao ponto de vista histórico:

i) O anel é sempre chamado ‘Anel de Gyges’, como na passagem 612b. Comentários posteriores a Platão mantêm o termo. Um comentário ao mss A [τν κατ Γύγην τν Λυδν στορίαν κα τν δακτύλιον] deixa de fora o antepassado e também o comentário ao mss F [περ τς το Γύγου σφενδόνης]. A exceção é apenas em Proclo e serve apenas para provar que os textos ADF já existiam na Antiguidade.

ii) Não nos parece que Platão estava preocupado com a genealogia lídia, mas podemos tentar manter que ‘Anel de Gyges’ é um termo curto para ‘Anel do ancestral de Gyges’. No entanto, outros elementos da história, como o assassinato do soberano e a cooperação da rainha, são ditos sobre Gyges ele mesmo, e não sobre seu bisavô, que tem o mesmo nome.

iii) το Λυδο não pode aqui se referir a Kroisos, mesmo que Heródoto tenha se referido a ele diversas vezes como Λυδός. Neste contexto, το Λυδο deveria significar ‘o presente soberano da Lídia’, o que não faria sentido. No contexto da passagem, Λυδός não poderia se referir a Kroisos por excelência.

iv) Não é coincidência que a palavra lídia transcrita como γύγης, realmente significou ‘avô; antepassado’. Isto era conhecido pelos gregos e aparece no Lexicon de Hesychius: γ972 (Latte) γύγαι· πάπποι.

Hesychius viveu no séc. V d.C. e é conhecido por ter compilado um léxico de palavras gregas incomuns e pouco conhecidas. Por ter vivido na mesma época que Proclo (que também era do séc. V d.C.), acreditamos que a inserção do προγόν a passagem 359d1 é tardia e provavelmente desta época, influenciada pelo léxico de Hesychius. Parece que na época de Platão a palavra γύγης seria facilmente associada com a palavra πάππος, no entanto, com a perda progressiva de seu significado, a inserção de προγόν foi utilizada para rememorar tal raiz etimológica. Concordamos com Slings que a inserção de τ προγόν seria um erro em relação ao texto primitivo. Ast em sua edição da República corrige a passagem retirando o τ e προγόν da passagem, mas mantendo o genitivo intacto [Γύγου το Λυδο], o que não dá conta da inserção. Parece-nos que a melhor maneira de corrigir o texto seria a explicação de Slings que assim coloca como sendo a passagem original: Γύγ τ Λυδ. Dessa forma, entraria em harmonia com a passagem 612b, mantendo Gyges como único possuidor do anel no texto platônico, assim como também estaria de acordo com a posterior inclusão dos termos τ e προγόν sem prejuízo para a interpretação da passagem 359d(47).

  Artigo recebido em 23/2/2011 e aprovado em 4/7/2011.

 1- Fr. 19W. A tradução é nossa.
2- Para a data aproximada de Arquíloco nos baseamos em JACOBY, F. “The Date of Archilochos”, The Classical Quarterly, v. 35, n.3, p. 97-109, jul.-oct. 1941.
3- A data comumente aceita pelos estudiosos é de 687-652 a.C., principalmente depois dos estudos de GELZER, H. “Das Zeitalter des Gyges”, RhM, v. 30, p. 230-268, 1875. No entanto, concordamos com os estudos de SPALINGER, Anthony J., “The Date of the Death of Gyges and its Historical Implications”, JAOS, v. 98, n. 4, p. 400-409, oct.-dec., 1978. Spalinger em seu texto aponta para o fato de que a morte de Gyges só é apontada no Prisma A dos anais de Assurbanipal. Tal Prisma data de 643/2 a.C., o que faz Spalinger calcular a morte de Gyges por volta de 644 a.C. Para calcular a data inicial do reinado de Gyges, nos baseamos na duração dita por Heródoto do reinado de Gyges, trinta e oito anos.
4- URE, P. N. The Origen of Tyranny. Cambridge: Cambridge University Press, 1922, p. 134.
5- ADRADOS, F. R. Líricos Griegos: Elegiacos y Yambógrafos Arcaicos, v.1. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1999, nota 2, p. 54.
6- MÜLLER, C. Fragmenta Historicum Graecorum, vol. III. Paris: Editore Ambrosio Firmin Didot, 1849, fr. 1, p. 72. Demais citações de Müller serão abreviadas por FHG, indicando-se em seguida volume, fragmento ou/e página.
7- ARISTÓTELES. Arte Retórica, 1418b30-31. Utilizamos para o grego a edição de W. D. Ross, Aristotelis Ars Rhetorica (Oxford: Clarendon Press, 1959). A tradução é nossa.
8- WEST, Martin. Studies in Greek Elegy and Iambus. (Untersuchungen zur antiken Literatur und Geschichte, Band 14) Berlin and New York: Walter de Gruyter, 1974, p. 22-39.
9- Frs. 13W e 13aW.
10- Anacreontea 8W. A tradução é nossa.
11- Greek Anthology, XI.47.1-4. A tradução é nossa.
12- HERODOTO. Histórias, I.8-15. Demais citações a Heródoto serão abreviadas por Hdt., indicando em seguida livro e parte. Utilizamos para o grego o texto estabelecido por Carolus Hude, Herodoti Historiae, Tomes I e II, (Oxford: Oford University Press, 1927).
13- Hdt. I.8.2.
14- Hdt. I,11.2-3.
15- Hdt. I,12.2.
16- PLATÃO. República, 359b-360b. Utilizamos aqui a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).
17- Utilizamos aqui o texto grego da República estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003).
18- Cf. ADAM, James. The Republic of Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p. 126-7,
41- SLINGS, S. R., “Critical Notes on Plato’s Politeia II”, Mnemosyne, v. 17, fasc. 3-4, p. 381-383, 1989.
47- Feitas as modificações, o texto poderia ser assim traduzido: “terem a faculdade que se diz ter sido concedida a Gyges, o Lídio” ou com a posterior inclusão dos termos “ao antepassado lídio, Gyges”.

Sócrates e Trasímaco, diálogo sobre o que é justiça

Sócrates — Tens razão quanto ao fato de que me instruo com os outros, mas estás enganado ao pretender que não lhes pago na mesma moeda. Pois eu pago na medida em que posso. Ora, não posso senão aplaudir, porque não possuo riquezas. Mas a alegria com que o faço, quando julgo que alguém fala bem, tu a conhecerás logo que me tenhas respondido; porque eu julgo que falarás bem.
Trasímaco — Ouve, então. Eu digo que a justiça é simplesmente o interesse do mais forte. Então, que esperas para me aplaudir? Vais-te recusar!
Sócrates — Em primeiro lugar, deixa que eu compreenda o que dizes, porque ainda não entendi. Pretendes que justiça é o interesse do mais forte. Mas como entendes isso, Trasímaco? Com efeito, não pode ser da seguinte maneira: Se Polidamas é mais forte do que nós e a carne de boi é melhor para conservar suas forças, não dizes que, também para nós, mais fracos do que  ele, esse alimento é vantajoso e ao mesmo tempo, justo? (Polidamas: atleta de enorme compleição; vencedor dos Jogos Olímpicos de 408).
Trasímaco — És um cínico, Sócrates. Tomas as minhas palavras por onde podes atacá-las melhor!
Sócrates — De forma alguma, nobre homem. Mas exprime-te mais claramente.
Trasímaco — De acordo! Tu sabes que, entre as cidades, umas são tirânicas, outras democráticas, outras aristocráticas.
Sócrates — Logicamente que sei.
Trasíxnaco — Portanto, o setor mais forte, em cada cidade, é o governo?
Sócrates — Sim.
Trasfmaco — E cada governo faz as leis para seu próprio proveito: a democracia, leis democráticas; a tirania, leis tirânicas, e as outras a mesma coisa; estabelecidas estas leis, declaram justo, para os governados, o seu próprio interesse, e castigam quem o transgride como violador da lei, culpando-o de injustiça. Aqui tens, homem excelente, o que afirmo: em todas as cidades o justo é a mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído; ora, este é o mais forte, de onde se segue, para um homem de bom raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma coisa: o interesse do mais forte.
Sócrates — Agora compreendo o que dizes. Procurarei estudá-lo. Portanto, também tu, Trasímaco, respondeste que aquilo que é vantajoso é justo, depois de me teres proibido de dar essa resposta, acrescentando, contudo: o interesse “do mais forte”.
Trasímaco — Uma pequena adição, talvez?
Sócrates — Ainda não é evidente que seja grande; mas é evidente que é necessário examinar se falas verdade. Reconheço que o justo é algo vantajoso; mas tu acrescentas à definição que é o interesse do mais forte; por mim, ignoro-o: preciso analisá-lo.
Trasímaco — Analisa-o.
Sócrates — Assim farei. Agora, diz-me: não julgas ser justo obedecer aos governantes?
Trasímaco — Julgo.
Sócrates — Mas os governantes são sempre infalíveis ou passíveis de se enganarem?
Trasímaco — E evidente que são passíveis de se enganarem.
Sócrates — Logo, qúando elaboram leis, fazem-nas boas e más?
Trasímaco — É assim que eu penso.
Sócrates — As boas leis são aquelas que instituem o que lhes é vantajoso e as más o que lhes é desvantajoso?
Trasímaco — Sim.
Sócrates — Mas o que eles instituíram deve ser obedecido pelos governados; é nisto que consiste a justiça?
Trasímaco — Com certeza.
Sócrates — Logo, na tua opinião, não apenas é justo fazer o que é vantajoso para o mais forte, mas também o contrário, o que é desvantajoso.
Trasímaco — Que estás dizendo?!
Sócrates — O que tu mesmo dizes, penso; mas examinemos melhor. Não concordamos que, às vezes, os governantes se enganam quanto ao que é o melhor, impondo determinadas leis aos governados? E que, por outro lado, é justo que os governados obedeçam ao que lhes ordenam os governantes? Não concordamos?
Trasímaco — Sim.
Sócrates — Então, acreditas também justo fazer o que é desvantajoso para os governantes e para os mais fortes, quando os governantes, inadvertidamente, dão ordens que lhes são prejudiciais, porquanto tu afirmas ser justo que os governados façam o que ordenam os governantes. Portanto, sábio amigo Trasímaco, não decorre necessariamente que é justo fazer o contrário daquilo que dizes? Com efeito, ordena-se ao mais fraco que faça o que é prejudicial ao mais forte.
Polemarco — Por Zeus, Sócrates, isso é claríssimo!
Clitofonte — Se ao menos testemunhasses por ele…
Polemarco — E quem necessita de testemunho? Trasímaco reconhece que às vezes os governantes fazem leis que lhes são prejudiciais e que é justo que os governados obedeçam a tais leis.
Clitofonte — Com efeito, Polemarco, Trasímaco afirmou ser justo que sejam obedecidas as ordens dadas pelos governantes.
Polemarco — De fato, Clitofonte, Polemarco considerou justo o que é vantajoso para o mais forte. Ao enunciar estes dois princípios, reconheceu também que, às vezes, os mais fortes dão aos mais fracos e aos governados ordens que são prejudiciais a eles mesmos. Destas declarações decorre que a justiça é tanto a vantagem como a desvantagem do mais forte.
Clitofonte — Mas ele definiu como vantagem do mais fone o que o mais forte crê ser vantajoso para ele; é isso que o mais fraco tem de fazer e foi isso que Trasímaco considerou justo.
Polemarco — Ele não se expressou desse modo!
Sócrates — Isso não importa, Polemarco. Porém, se agora Trasímaco se expressa assim, admitamos que é assim que o entende. Diz-me, Trasímaco: entendes por justiça o que parece vantajoso para o mais forte, quer isso lhe seja vantajoso, quer não? Podemos dizer que te expressas assim?
Trasíinaco — De forma alguma. Acreditas que julgo aquele que se engana o mais forte, no momento em que se engana?
Sócrates — Assim acreditava quando tu reconheceste que os governantes não são infalíveis, mas que podem enganar-se.
Trasímaco — És um difamador, Sócrates, quando discutes. Por acaso consideras médico aquele que se engana em relação aos doentes, no mesmo instante e enquanto se engana? Ou calculador aquele que comete um erro de cálculo, no preciso momento em que comete o erro? Não. E um modo de falar, acredito, quando dizemos: o médico se enganou, o calculador e o escriba se enganaram. Mas julgo que nenhum deles, na medida em que é o que o denominamos, jamais se engana; de modo que, para falar com precisão, visto que queres ser preciso, nenhum artesão se engana. Aquele que se engana o faz quando a ciência o abandona, no instante em que não é mais artesão; assim, artesão, sábio ou governante, ninguém se engana no exercido das suas funções, apesar de todos dizerem que o médico se enganou, que o governante se enganou. Portanto, admito que te tenha respondido há pouco neste sentido; mas, para me expressar de forma mais exata, o governante, enquanto governante, não se engana, não comete um erro ao fazer passar por lei o seu maior interesse, que deve ser realizado pelo governado. Deste modo, como no mído, afirmo que a justiça consiste em fazer o que é vantajoso para o mais forte.
Sócrates — Que seja, Trasímaco. Pareço-te um difamador?
Trasímaco — Exatamente.
Sócrates — Achas que te inquiri como fiz, com premeditação, para te prejudicar na discussão?
Trasímaco — Com toda a certeza. Mas não terás êxito, porque não poderás esconder-se para me prejudicar, nem me dominares pela violência na disputa.
Sócrates — Eu nem sequer o tentarei, homem bem-aventurado! Porém, para que isso não aconteça, define claramente se entendes no sentido vulgar ou no sentido exato, de que acabas de falar, os termos governante, mais forte, para vantagem de quem será justo que o mais fraco trabalhe.
Trasímaco — Entendo o governante no sentido exato da palavra. Para isso, tenta prejudicar-me ou caluniar-me, se puderes. Mas não és capaz!
Sócrates — Crês que sou louco a ponto de tentar tosquiar um leão ou caluniar Trasímaco?
Trasímaco — A verdade é que tentaste, embora inutilmente!
Sócrates — Chega com este palavreado! Mas diz-me: o médico, no sentido exato do termo, de que falavas ainda há pouco, tem por objetivo ganhar dinheiro ou tratar os doentes? Mas fala-me do verdadeiro médico.
Trasímaco — Tem por objetivo tratar os doentes.
Sâcrates — E o piloto? O verdadeiro piloto é chefe dos marinheiros ou marinheiro?
Trasímaco — Chefe dos marinheiros.
Sócrates — Não penso que se deva ter em conta o fato de navegar para que o denominemos marinheiro; de fato, não é por navegar que o denominamos piloto, mas devido à sua arte e ao comando que exerce sobre os marinheiros.
Trasímaco — Concordo.
Sócrates — Portanto, para o doente e o marinheiro, existe alguma vantagem?
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — E a arte não objetiva procurar e proporcionar a cada um o que é vantajoso para ele?
Trasímaco — Sim.
Sócrates — Mas, para cada arte, existe outra vantagem além de ser tão perfeita quanto possível?
Trasímaco — Qual é o sentido da tua pergunta?
Sócrates — Este. Se me perguntasses se é suficiente ao corpo ser corpo ou se tem necessidade de outra coisa, responder-te-ia: Certamente que tem necessidade de outra coisa. Para isso é que a arte médica foi inventada: porque o corpo é defeituoso e não lhe é suficiente ser o que é. Por isso, para lhe proporcionar vantagens, a arte organizou-se’. Parece-te que tenho ou não razão?
Trasímaco — Tens razão.
Sócrates — Mas então a medicina é defeituosa? Geralmente, uma arte exige certa virtude — como os olhos a visão ou as orelhas a audição, pelo fato de que estes órgãos necessitam de uma arte que examine e lhes proporcione a vantagem de ver e ouvir? E nessa mesma arte existe algum defeito? Cada arte exige outra arte que examine o que lhe é vantajoso, e esta, por sua vez, outra semelhante, e assim até ao infinito? Ou examina ela própria o que lhe é vantajoso? Ou não precisa nem dela própria nem de outra para remediar a sua imperfeição? Pois nenhuma arte apresenta defeito ou imperfeição e não deve procurar outra vantagem exceto a do indivíduo a que se aplica: ela própria, quando verdadeira, está isenta de mal e é pura enquanto se mantiver rigorosa e totalmente de acordo com a sua natureza. Analisa, tomando as palavras no sentido exato de que falavas. É assim ou não?
Trasímaco — Parece-me que sim.
Sócrates — Portanto, a medicina não objetiva a sua própria vantagem, mas a do corpo.
Trasímaco — Certamente.
Sócrates — Nem a arte equestre a sua própria vantagem, mas a dos cavalos; nem, em geral, qualquer arte tem por objeto a sua própria vantagem — pois não necessita de nada —, mas a do indivíduo a que se aplica.
Trasímaco — E assim que me parece.
Sócrates — Mas, Trasímaco, as artes governam e dominam o objeto sobre o qual se exercem.
Ele concordou comigo neste ponto, embora a muito custo.
Sócrates — Portanto, nenhuma ciência procura nem prescreve a vantagem do mais forte, mas a do mais fraco, que lhe é sujeito. Também concordou comigo neste ponto, mas só depois de ter procurado uma contestação; quando cedeu, eu lhe disse:
Sócrates — Portanto, o médico, na medida em que é médico, não objetiva nem prescreve a sua própria vantagem, mas a do doente? Com efeito, reconhecemos que o médico, no sentido exato da palavra, governa o corpo e não é homem de negócios. Não reconhecemos?
Ele concordou.
Sócrates — E que o piloto, no sentido exato da palavra, lidera os marinheiros, mas não é marinheiro?
Trasímaco — Foi assim que o reconhecemos.
Sócrates — Consequentemente, um tal piloto, um tal governante, não objetivará e não prescreverá a sua própria vantagem, mas sim a do marinheiro, do indivíduo que ele governa.
Ele concordou com grande dificuldade.
Sócrates — Sendo assim, Trasímaco, nenhum governante, seja qual for a natureza da sua autoridade, na medida em que é governante, não objetiva e não ordena a sua própria vantagem, mas a do indivíduo que governa e para quem exerce a sua arte; é com vista ao que é vantajoso e conveniente para esse indivíduo que diz tudo o que diz e faz tudo o que faz.
Estávamos neste ponto da discussão e era claro para todos que a definição da justiça tinha sido virada do avesso, quando Trasímaco, em lugar de responder, gritou:
— Tu tens ama, Sócrates?
Sócrates — O quê? Não seria mais apropriado responderes do que me fazeres tal pergunta?
Trasímaco — E que ela não te deixa babar e não te assoa o nariz quando necessário, visto que não aprendeste a diferenciar os carneiros do pastor.
Sócrates — Por que dizes isso?
Trasímaco — Porque crês que os pastores e os vaqueiros objetivam o bem dos seus carneiros e dos seus bois e os engordam e tratam tendo em vista outra coisa para além do bem dos seus patrões e deles mesmos. E, da mesma maneira, acreditas que os governantes das cidades, os que são realmente governantes, olham para os seus súditos como se olha para carneiros e que objetivam, dia e noite, tirar deles um lucro pessoal. Foste tão longe no conhecimento do justo e da justiça, do injusto e da injustiça, que ignoras que a justiça é, na realidade, um bem alheio, o interesse do mais forte e daquele que governa e a desvantagem daquele que obedece e serve; que a injustiça é o oposto e comanda os simples de espírito e os justos; que os indivíduos trabalham para o interesse do mais forte e fazem a sua felicidade servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles mesmos. Aqui tens, ó muito simples Sócrates, como é necessário encarar o caso: o homem justo é em todos os lugares inferior ao injusto. Em primeiro lugar, no comércio, quando se associam um ao outro, nunca descobrirás, ao dissolver-se a sociedade, que o justo ganhou, mas que perdeu; em seguida, nos negócios públicos, quando é preciso pagar contribuições, o justo paga mais do que os seus iguais, o injusto menos; quando, ao contrário, trata-se de receber, um não recebe nada, o outro muito. E, quando um e outro ocupam algum cargo, acontece que o justo, mesmo que não haja outro prejuízo, deixa, por negligência, que os seus negócios domésticos periclitem e não tira da função pública nenhum proveito, por causa da sua justiça. Além disso, incorre no ódio dos parentes e conhecidos, ao recusar servi-los em detrimento da justiça; quanto ao injusto, é exatamente o contrário. Pois entendo como tal aquele de quem falava há pouco, o que é capaz de se sobrepor aos outros; examina-o bem, se quiseres saber até que ponto, no particular, a injustiça é mais vantajosa do que a justiça. Mas irás compreendê-lo mais facilmente se fores até a injustiça mais perfeita, a que leva ao ápice da felicidade o homem que a comete e ao ápice da infelicidade os que a sofrem e não querem cometê-la. Esta injustiça é a tirania que, por fraude ou violência, se apodera do bem alheio: sagrado, profano, particular, público, e não por partes, mas na totalidade. Para cada um destes delitos, o homem que se deixa apanhar é punido e coberto das piores ignomínias — com efeito, essas pessoas que agem por partes são consideradas sacrílegas, traficantes de escravos, arrombadores de moradias, espoliadores, ladrões, conforme a injustiça cometida. Mas quando um homem, além da fortuna dos cidadãos, se apodera das suas pessoas e os escraviza, em vez de receber esses nomes ignominiosos, e considerado feliz e afortunado, não apenas pelos cidadãos, mas também por todos aqueles que sabem que ele cometeu a injustiça em toda a sua extensão; com efeito, não receiam cometer a injustiça os que a reprovai»: receiam ser vítimas dela. Por isso, Sócrates, a injustiça levada a um alto grau é mais forte, mais livre, mais digna de um senhor do que a justiça e, como eu dizia a princípio, a justiça significa o interesse do mais forte e a injustiça é em si mesma vantagem e lucro.

Depois de falar dessa maneira, Trasímaco pretendia retirar-se, após ter, como um banhista, inundado os nossos ouvidos com o seu impetuoso e abundante discurso. Mas os assistentes não o deixaram partir e forçaram-no a permanecer para justificar as suas palavras. Eu próprio insisti com ele, dizendo-lhe:
— Ó divino Trasímaco, depois de nos teres feito um tal discurso, pensas em ir embora, antes de demonstrares suficientemente ou ensinares se isso é assim ou diferente? Crês que é tarefa fácil definir a regra de vida que cada um de nós deve seguir para viver da maneira mais proveitosa?
Trasímaco — Por acaso eu penso que é de outra maneira?
Sócrates — E o que parece. Ou então não te preocupas conosco e não te importa que levemos uma vida pior ou melhor, na ignorância do que tu pretendes saber. Mas, meu caro, dá-te ao incômodo de nos instruir também: não farás um mau investimento se nos fizeres teus devedores, numerosos como somos. Com efeito, se queres saber o que penso, não estou convencido e não creio que a injustiça seja mais vantajosa do que a justiça, mesmo quando há a liberdade de praticá-la e não se é impedido de fazer o que se quer. Mesmo que um homem, meu caro, seja injusto e tenha o poder de praticar a injustiça por fraude ou à força: nem por isso estou convencido de que tire daí mais proveito que da justiça. Talvez este seja também o sentimento de outros entre nós, e não somente o meu; convence-nos, portanto, homem divino, de maneira satisfatória, de que fazemos mal em preferir a justiça à injustiça. (Todo esse discurso de Trasíxnaco é uma paródia da linguagem dos solistas.)
Trasímaco — E como eu haveria de te convencer, se não o consegui com o que já disse? Que mais posso fazer? Será necessário que enfie os meus argumentos na tua cabeça?
Sócrates — Por Zeus, basta! Em primeiro lugar, mantém-te nas posições assumidas, ou, se as mudares, terás de fazê-lo com clareza e não nos enganes. Vês agora, Trasímaco — para voltar ao que dissemos —, que, depois de teres apresentado a definição do verdadeiro médico, não achaste que devias revelar rigorosamente a do verdadeiro pastor. Pensas que, como pastor, ele engorda os seus carneiros não objetivando seu maior bem, mas, como um glutão que pretende dar um festim, objetivando a boa carne ou, como um comerciante, objetivando a venda, e não como um pastor. Mas a arte do pastor objetiva unicamente o maior bem do indivíduo a que se aplica — já que ele próprio está suficientemente provido das qualidades que asseguram a sua excelência, enquanto se mantém de acordo com a sua natureza de arte pastoril. Pelo mesmo motivo, eu supunha há pouco que éramos obrigados a reconhecer que todo governo, enquanto governo, objetiva unicamente o maior bem dos indivíduos que governa e dos quais é responsável, quer se trate da população de uma cidade, quer de um particular. Mas tu crês que os governantes das cidades, os que governam realmente, o fazem com prazer?
Trasímaco — Se creio? Por Zeus, tenho certeza!
Sócrates — Mas como, Trasímaco?! Não notaste que ninguém concorda em exercer os outros cargos por eles mesmos, que, ao contrário, se exige uma retribuição, porque não é ao próprio que o seu exercício aproveita, mas aos governados? E responde a isto: não se diz sempre que uma arte se diferencia de outra por ter um poder diferente? E, homem bem aventurado, não responde contra a tua opinião, para que possamos avançar!
Trasímaco — Mas é nisso que ela se diferencia.
Sócrates — E cada um de nós não procura conseguir um certo benefício particular e não comum a todos, como a medicina a saúde, a pilotagem a segurança na navegação e assim por diante?
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — E a arte do mercenário, o salário, dado que reside aí o seu próprio poder? Confundes a medicina com a pilotagem? Ou, para definir as palavras com rigor, como propuseste, se alguém recupera a saúde governando um navio, porque é vantajoso para ele navegar, denominarás por isso medicina a sua arte?
Trasímaco — Claro que não.
Sócrates — Mas como! Denominarás medicina a arte do mercenário porque o médico, ao curar, ganha salário?
Trasímaco — Não.
Sócrates — Não afirmamos que cada arte objetiva um beneficio particular?
Trasímaco — Afirmamos.
Sócrates — Portanto, se todos os artesãos se beneficiam em comum de um certo lucro, é evidente que acrescentam à sua arte um elemento comum de que auferem lucro?
Trasímaco — E o que parece.
Sócrates — E nós declaramos que os artesãos ganham salário porque adicionam à sua arte a do mercenário.
Reconheceu-o a custo.
Sócrates — Portanto, não é da arte que exerce que cada um retira esse proveito que consiste em receber um salário; mas, examinando com rigor, a medicina cria a saúde e a arte do mercenário proporciona o salário, a arquitetura edifica a moradia e a arte do mercenário, que a acompanha, proporciona o salário, e assim todas as outras artes: cada um trabalha na obra que lhe é própria e aproveita ao indivíduo a que se aplica. Porém, se não recebesse salário, tiraria o artesão proveito da sua arte?
Trasímaco — Acredito que não.
Sócrates — E sua arte deixa de ser útil quando ele trabalha gratuitamente?
Trasímaco — A meu ver, não.
Sócrates — Então, Trasímaco, é evidente que nenhuma arte e nenhum comando provê ao seu próprio benefício, mas, como dizíamos há instantes, assegura e objetiva o do governado, objetivando o interesse do mais fraco, e não o do mais forte. Eis por que, meu caro Trasímaco, que eu dizia há pouco que ninguém concorda de bom grado em governar e curar os males dos outros, mas exige salário, porque aquele que quer exercer convenientemente a sua arte não faz e não objetiva, na medida em que objetiva segundo essa arte, senão o bem do governado; por estas razões, é necessário pagar um salário aos que concordam em governar, seja em dinheiro, honra ou castigo, se porventura se recusarem.
Glauco — Que queres dizer com isso, Sócrates? Eu conheço os dois outros tipos de salários, mas ignoro o que entendes por castigo dado na forma de salário.
Sócrates — Então não conheces o salário dos melhores, aquilo pelo qual os mais virtuosos governam, quando se resignam a fazê-lo. Não sabes que o amor à honra e ao dinheiro é considerado coisa vergonhosa e, efetivamente, o é?
Glauco — Sei.
Sócrates — Devido a isso, os homens de bem não querem governar nem pelas riquezas nem pela honra; porque não querem ser considerados mercenários, exigindo abertamente o salário correspondente à sua função, nem ladrões, tirando dessa função lucros secretos; também não trabalham pela honra, porque não são ambiciosos. Portanto, é preciso que haja obrigação e castigo para que aceitem governar — é por isso que tomar o poder de livre vontade, sem que a necessidade a isso obrigue, pode ser considerado vergonha — e o maior castigo consiste em ser governado por alguém ainda pior do que nós, quando não queremos ser nós a governar; é com este receio que me parecem agir, quando governam, as pessoas honradas, e então assumem o poder não como um bem a ser usufruído, mas como uma tarefa necessária, que não podem confiar a outras melhores que elas nem a iguais. Se surgisse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para fugir do poder, como agora se luta para obtê-lo, e tornar-se-ia evidente que, na verdade, o governante autêntico não deve visar ao seu próprio interesse, mas ao do governado; de modo que todo homem sensato preferiria ser obrigado por outro do que preocupar-se em obrigar outros. Portanto, de forma alguma concordo com Trasímaco, quando afirma que a justiça Significa o interesse do mais forte. Mas voltaremos a este ponto mais tarde; dou uma importância muito maior ao que diz agora Trasímaco: que a vida do homem injusto é superior à do justo. Que partido tomas, Glauco? Qual destas asserções te parece mais verdadeira?
Glauco — A vida do homem justo parece-me mais proveitosa.
Sócrates — Ouviste a relação que Trasímaco fez dos bens ligados à vida do injusto?
Glauco — Ouvi, mas não me convenci.
Sócrates — Queres então que o convençamos, se conseguirmos encontrar o meio, de que ele não está na verdade?
Glauco — Como não haveria de querer?
Sócrates — Se, juntando as nossas forças contra ele e opondo argumento a argumento, relacionarmos os bens que a justiça proporciona, se, por seu turno, ele replicar, e nós também, será preciso contar e avaliar as vantagens citadas por uma e outra parte em cada argumento e iremos precisar de juizes para decidir; se, ao contrário, como há pouco, debatermos a questão até conseguirmos um mútuo acordo, nós seremos conjuntamente juizes e advogados.
Glauco — É verdade.
Sócrates — Qual destes dois métodos preferes?
Glauco — O segundo.
Sócrates — Então, Trasímaco, voltemos ao começo e responde-me. Acreditas que a injustiça total é mais proveitosa do que a justiça total?
Trasímaco — Com certeza, e já expliquei por que razões.
Sócrates — Muito bem, mas da maneira que entendes essas duas coisas, denominas uma virtude e a outra, vício?
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — E é a justiça que denominas virtude e a injustiça, vício?
Trasímaco — E o que dou a entender, encantadora criatura, quando digo que a injustiça é proveitosa e a justiça não o é?
Sócrates — Como é, então?
Trasímaco — O contrário.
Sócrates — A justiça é um vício?
Trasímaco — Não, mas uma nobre simplicidade de caráter.
Sócrates — Então a injustiça é perversidade de caráter?
Trasímaco — Não, é prudência.
Sócrates — Será, Trasímaco, que os injustos te parecem sábios e bons?
Trasímaco — Sim, aqueles que são capazes de cometer a injustiça com perfeição e de submeter cidades e povos. Pensas, talvez, que me refiro aos gatunos? Sem dúvida, tais práticas são rendosas, enquanto não são descobertas; mas não merecem menção ao lado das que acabo de indicar.
Sócrates — Percebo perfeitamente o teu raciocínio, mas o que me surpreende é que classifiques a injustiça com a virtude e a sabedoria, e a justiça com os seus opostos.
Trasímaco — Mas é exatamente assim que as classifico.
Sócrates — Isto é grave, camarada, e não é fácil saber o que se pode dizer. Se, com efeito, admitisses que a injustiça é proveitosa, admitindo ao mesmo tempo, como alguns outros, que é vício e coisa vergonhosa, poderíamos responder-te invocando as noções correntes sobre o assunto; mas, evidentemente, tu dirias que ela é bela e forte e conceder-lhe-ias todos os atributos que nós concedemos à justiça, visto que ousaste compará-la com a virtude e a sabedoria.
Trasímaco — Adivinhas muito bem.
Sócrates — Contudo, não devo recusar-me a continuar com este exame enquanto puder acreditar que falas seriamente. E que me parece, realmente, Trasímaco, que não é caçoada da tua parte e que estás exprimindo a tua verdadeira opinião.
Trasímaco — Que importância tem que seja ou não a minha opinião? Limita-te a refutar-me.
Sócrates — De fato, não tem importância. Mas responde a mais isto: parece-te que homem justo procura prevalecer de algum modo sobre outro o homem justo?
Trasímaco — Jamais, pois não seria educado e simples como é.
Sócrates — Nem mesmo numa ação justa?
Trasímaco — Nem assim.
Sócrates — Mas ele pretenderia prevalecer sobre o homem injusto e pensaria ou não fazê-lo justamente?
Trasímaco — Pensaria e o pretenderia, mas não poderia.
Sócrates — Não foi isso que perguntei: quero saber se o justo não teria nem a pretensão nem o desejo de prevalecer sobre o justo, mas apenas sobre o injusto.
Trasímaco — Assim é.
Sócrates — E o injusto pretenderia prevalecer sobre o justo e sobre a ação justa?
Trasímaco — Como não, se ele pretende prevalecer sobre todos?
Sócrates — Então, prevalecerá sobre o homem injusto e sobre a ação injusta e se empenhará em prevalecer sobre todos?
Trasímaco — Isso mesmo.
Sócrates — Resumindo: o justo não prevalece sobre o seu semelhante, mas sobre o seu contrário; o injusto prevalece sobre o seu semelhante e o seu contrário.
Trasímaco — Excelentemente expresso.
Sócrates — Porém, o injusto é sábio e bom, ao passo que o justo não é nem uma coisa nem outra?
Trasímaco — Excelente, também.
Sócrates — Como conseqüência, o injusto assemelha-se ao sábio e ao bom, e o justo não se lhes assemelha?
Trasímaco — Como poderia ser diferente? Sendo o que é, ele se assemelha aos seus semelhantes e o outro não se lhes assemelha.
Sócrates — Muito bem. Portanto, cada um é tal como aqueles a que se assemelha?
Trasímaco — Quem pode duvidar?
Sócrates — Que seja, Trasímaco. Agora, não afirmas que um homem é músico e que outro não o é?
Trasímaco — Afirmo.
Sócrates — Qual dos dois é conhecedor e qual não é?
Trasímaco — Certamente, o músico é conhecedor e o outro não é.
Sócrates — E um não é bom nas coisas de que é conhecedor e o outro não o é?
Trasímaco — Certamente.
Sócrates — Mas a respeito da medicina não é assim?
Trasímaco — E assim.
Sócrates — Agora, crês, excelente homem, que um músico que afim a sua lira, esticando ou soltando as cordas, pretende prevalecer sobre um músico ou ter vantagem sobre ele?
Trasímaco — Não, não creio.
Sócrates — Mas quererá prevalecer sobre um homem ignorante em música?
Trasímaco — Sim, com certeza.
Sócrates — E o médico? Ao prescrever alimento e bebida, quererá prevalecer sobre um médico ou sobre a prática médica?
Trasímaco — Certamente que não.
Sócrates — E sobre um homem que ignora a medicina?
Trasímaco — Sim.
Sócrates — Mas percebes, a respeito da ciência e da ignorância em geral, se um conhecedor qualquer parece querer prevalecer, com atos ou com palavras, sobre outro conhecedor e não agir como o seu semelhante no mesmo caso.
Trasímaco — Talvez seja necessário que seja assim.
Sócrates — Mas, da mesma forma, não quererá o ignorante prevalecer sobre o conhecedor e o ignorante?
Trasímaco — Talvez.
Sócrates — Ora, o conhecedor é sábio?
Trasímaco — E.
Sócrates — E o sábio é bom?
Trasímaco — E.
Sócrates — Portanto, o homem sábio e bom não quererá prevalecer sobre o seu semelhante, mas sobre aquele que não se assemelha a ele, sobre o seu oposto.
Trasímaco — Aparentemente.
Sócrates — Ao passo que o homem mau e ignorante quererá prevalecer sobre o seu semelhante e o seu oposto.
Trasímaco — Pode ser.
Sócrates — Mas, Trasímaco, o nosso homem injusto não prevalece sobre o seu oposto e o seu semelhante? Não o disseste?
Trasímaco — Disse.
Sócrates — E não é verdade que o justo não prevalecerá sobre o seu semelhante, mas sim sobre o seu oposto?
Trasímaco — É verdade.
Sócrates — Então, o justo assemelha-se ao homem sábio e bom e o injusto, ao homem mau e ignorante.
Trasímaco — Pode ser.
Sócrates — Mas nós havíamos afirmado que cada um deles é igual àquele a que se assemelha.
Trasímaco — De fato, afirmamos.
Sócrates — Logo, o justo é bom e sábio e o injusto, ignorante e mau.
Trasímaco concordou com tudo isto, não tão facilmente como o meu relato, mas contra sua vontade e a muito custo. Suava abundantemente, tanto mais que fazia muito calor — e foi então que, pela primeira vez, vi Trasímaco enrubescer! E quando concordamos que a justiça é virtude e sabedoria e a injustiça vício e ignorância, prossegui:
Sócrates — Consideremos isto definido. Mas afirmamos que a injustiça tem também a força. Não te lembras, Trasímaco?
Trasímaco — Lembro-me, mas não me agrada o que acabas de afirmar e sei como refutar. Contudo, se eu usar da palavra, com certeza dirás que estou fazendo um discurso. Por isso, deixa-me falar à vontade ou, se queres interrogar-me, interroga-me; e eu, como se faz com as velhas que contam histórias, dir-te-ei “seja!’ e te aprovarei ou desaprovarei com a cabeça.
Sócrates — Mas, pelo menos, nao respondas contra a tua opinião.
Trasímaco — Farei como quiseres, já que não me deixas falar. Que mais queres?
Sócrates — Nada, por Zeus! Faz como preferires; vou interrogar-te.
Trasímaco — Interroga.
Sócrates — Far-te-ei a mesma pergunta que há pouco, para podermos continuar a discussão: o que é a justiça em comparação com a injustiça? Com efeito, foi dito que a injustiça é mais poderosa do que a justiça; mas agora, se a justiça é sabedoria e virtude, conclui-se facilmente, penso eu, que ela é mais poderosa do que a injustiça, visto que a injustiça é ignorância. Já ninguém pode ignorá-lo. No entanto, não é de uma maneira tão simples, Trasímaco, que pretendo abordar o assunto, mas do ponto de vista seguinte: existe cidade injusta que tente sujeitar ou tenha sujeitado outras cidades, mantendo um grande número delas em escravidão?
Trasímaco — Com certeza. E é assim que procederá a melhor cidade, a mais perfeitamente injusta.
Sócrates — Eu sei que era esta a tua tese. Mas a tal propósito considero o seguinte ponto: uma cidade que se torna senhora de outra cidade poderá fazê-lo sem intermédio da justiça ou será obrigada a recorrer a ela?
Trasímaco — Se, como dizias há pouco, a justiça for sabedoria, recorrerá a ela; mas, se for como eu dizia, utilizará a injustiça.
Sócrates — Estou feliz, Trasímaco, por não aprovares ou desaprovares com um gesto de cabeça e responderes tão bem.
Trasímaco — Faço-o para te agradar.
Sócrates — Muito amável da tua parte. Mas, por favor, responde ainda a isto: achas que uma cidade, um exército, um bando de salteadores ou de ladrões, ou qualquer outra associação que persegue em comum um objetivo injusto, poderia levar a cabo qualquer empresa se os seus membros violassem entre si as normas da justiça?
Traslmaco — Certamente que não.
Sócrates — E se observassem as normas? Não seria melhor?
Trasfmaco — Com certeza.
Sócrates — Portanto, Trasímaco, a injustiça faz nascer entre os homens dissensões, ódios e brigas, enquanto a justiça alimenta a concórdia e a amizade. Concordas?
Trasímaco — Assim seja! Não quero entrar em discussão contigo.
Sócrates — Estás se portando muito bem, excelente homem. Mas responde a esta pergunta: se é próprio da injustiça provocar o ódio em todo lugar onde acontece, aparecendo em homens livres ou escravos, não fará que eles se odeiem, briguem entre si e sejam impotentes para empreender seja o que for em comum?
Trasfmaco — Sem dúvida.
Sócrates — E se a injustiça surgir em dois homens? Não ficarão divididos, cheios de rancor, inimigos um do outro e dos justos?
Trasímaco — Ficarão.
Sócrates — E se, maravilhoso amigo, a injustiça surgir em um único homem, ela perderá o seu poder ou o manterá intato?
Trasímaco — Penso que o manterá intato!
Sócrates — Portanto, não parece possuir o poder, seja qual for o lugar em que ela surja, cidade, tribo, exército ou sociedade, de tornar primeiramente cada um deles incapaz de agir de acordo consigo próprio, devido às dissensões e contendas que causa, e, em seguida, de torná-lo inimigo de si mesmo, do seu oposto e do justo?
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — E creio que, num único homem, a injustiça produzirá os mesmos efeitos que está na sua natureza produzir; em primeiro lugar, tomará esse homem incapaz de agir, provocando nele a rebeldia e a discórdia; em seguida, irá transformá-lo em inimigo de si mesmo e dos justos. Não é?
Trasímaco — E.
Sócrates — Mas, meu amigo, os deuses não são justos?
Trasímaco — Que seja!
Sócrates — Portanto, também entre os deuses, o injusto será inimigo, e o justo amigo.
Trasímaco — Regozija-te sem receio com os teus argumento: não te contradirei, para não provocar o ressentimento da assembleia.
Sócrates — Então, continuemos! Alimenta-me com o resto do festim, continuando a responder. Acabamos de concluir que os homens justos são mais sábios, melhores e mais poderosos do que os homens injustos, e que estes são incapazes de agir harmonicamente — e, quando dizemos que às vezes levaram a bom termo um assunto em comum, não é, de maneira nenhuma, a verdade, porque uns e outros não seriam poupados se tivessem sido totalmente injustos; por isso, é evidente que existia neles uma certa justiça que os impediu de se prejudicarem mutuamente, na época em que causavam dano às suas vítimas, e que lhes permitiu realizar o que realizaram; lançando-se em seus injustos empreendimentos, só em parte estavam pervertidos pela injustiça, visto que os inteiramente maus e os totalmente injustos são também inteiramente incapazes de fazer seja o que for. Eis como eu o compreendo, e não como tu supunhas no início. Agora, precisamos analisar se a vida do justo é melhor e mais feliz do que a do injusto: questão que tínhamos adiado para análise posterior. Ora, parece-me que isso é evidente, conforme aquilo que dissemos. No entanto, devemos analisar melhor o problema, pois não se trata de uma discussão a respeito de uma fflvialidade, mas sobre o modo como temos de regular a nossa vida.
Trasímaco — Então, analisa.
Sócrates — Assim farei. Diz-me: parece-te que o cavalo tem uma função?
Trasímaco — Sim, me parece.
Sócrates — Dirias, então, que é função do cavalo, ou de qualquer outra criatura, apenas o que pode ser feito por ele ou o que se faz melhor com ele?
Trasímaco — Não compreendo.
Sócrates — Explico-me melhor: tu podes enxergar sem ser com os olhos?
Trasímaco — Certamente que não.
Sócrates — E podes ouvir sem ser com os ouvidos?
Trasímaco — De forma alguma.
Sócrates — Portanto, podemos afirmar que são essas as funções desses órgãos.
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — Mas não podes podar uma videira com uma faca, um trinchete e muitos outros instrumentos?
Trasímaco — E por que não?
Sócrates — Mas com nenhum outro, creio eu, tão bem quanto com um podão, que existe para isso.
Trasímaco — Concordo.
Sócrates — Portanto, não afirmaremos que é essa a sua função?
Trasímaco — Por certo que afirmaremos.
Sócrates — Julgo que agora compreendes melhor o que eu dizia há pouco, quando te perguntava se a função de uma coisa não é o que ela pode fazer ou o que ela faz melhor do que as outras.
Trasímaco — Compreendo e creio que é realmente essa a função de cada coisa.
Sócrates — Ótimo. Mas bâo existe também uma virtude em cada coisa a que é atribuida uma função? Voltemos aos exemplos anteriores: os olhos possuem uma função?
Trasímaco — Possuem.
Sócrates — Então, possuem também uma virtude?
Trasímaco — Sim, possuem uma virtude.
Sócrates — Muito bem! As orelhas, dissemos nós, possuem uma função?
Trasímaco — Sim.
Sócrates — E, por conseguinte, também uma virtude?
Trasimaco — Também uma virtude.
Sócrates — Mas não acontece o mesmo com todas as coisas?
Trasímaco — Acontece.
Sócrates — Pois bem! Poderiam os olhos desempenhar bem a sua função se não possuíssem a virtude que lhes é própria ou se, em lugar dessa virtude, possuissem o vício contrário?
Trasímaco — Como poderiam? Queres, por acaso, dizer a cegueira, em vez da vista?
Sócrates — Qual é a sua virtude, pouco importa; ainda não to perguntei, mas apenas se cada coisa desempenha bem a sua função por virtude própria e mal pelo vício contrário.
Trasímaco — É como dizes.
Sócrates — Posto isto, os ouvidos, sendo privados da sua virtude própria, desempenharão mal a sua função?
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — Este princípio pode ser aplicado a todas as outras coisas?
Trasímaco — Julgo que sim.
Sócrates — Então, analisa agora isto: a alma não possui uma função que nada, a não ser ela, poderia desempenhar, como vigiar, comandar, deliberar e o resto? Podemos atribuir estas funções a outra coisa que não à alma e não temos o direito de dizer que elas lhe são peculiares?
Trasímaco — Não podemos atribuí-las a nenhuma outra coisa.
Sócrates — E a vida? Não afirmaremos que é uma função da alma?
Trasímaco — Com certeza.
Sócrates — Portanto, afirmaremos que a alma também possui a sua virtude própria?
Trasímaco — Afirmaremos.
Sócrates — Então, Trasímaco, a alma executará bem essas funções se for privada da sua virtude própria? Ou será impossível?
Trasímaco — Será impossível.
Sócrates — Em decorrência disso, é obrigatório que uma alma má comande e vigie mal e que uma alma boa faça bem tudo isso.
Trasímaco — É obrigatório.
Sócrates — Ora, não concluímos que a justiça é uma virtude e a injustiça, um vício da alma?
Trasimaco — Concluímos.
Sócrates — Por consegumte, a alma justa e o homem justo viverão bem e o injusto, mal?
Trasímaco — Assim parece, de acordo com o teu raciocínio.
Sócrates — Então, aquele que vive bem é feliz e afortunado e o que vive mal, o contrário.
Trasímaco — Não há dúvida.
Sócrates — Portanto, o justo é feliz e o injusto, infeliz.
Trasímaco — Que seja!
Sócrates — E não é vantajoso ser infeliz, mas ser feliz.
Trasímaco — Sem dúvida.
Sócrates — Por conseguinte, divino Trasímaco, jamais a injustiça é mais vantajosa do que a justiça.
Trasímaco — Que seja esse, Sócrates, o teu festim das festas de Béndis!
Sócrates — Tive-o graças a ti, Traslmaco, visto que recuperaste a calma e deixaste de ser rude comigo. No entanto, não me regalei o suficiente: por culpa minha, e não tua. Parece-me que fiz como os glutões, que se lançam avidamente sobre o prato que lhes entregam, antes de terem apreciado suficientemente o anterior; da mesma forma, antes de termos encontrado o que procurávamos inicialmente, a natureza da justiça, lancei-me numa discussão para analisar se ela é vício e ignorância ou sabedoria e virtude; tendo surgido em seguida outra hipótese, a de saber que a mjustiça é mais vantajosa do que a justiça, não pude evitar de ir de uma para outra, de modo que o resultado da nossa conversa é que não sei nada; porquanto, não sabendo o que é a justiça, ainda menos saberei se é virtude ou não e se aquele que a possui é feliz ou infeliz.

Sócrates pergunta a Céfalo qual o maior proveito de sua fortuna

Sócrates — Diz-me, Céfalo, tu obtiveste por herança teus bens ou os conquistaste?
Céfalo — Quanto é que conquistei, Sócrates? Como comerciante, fiquei entre meu avô e meu pai. Meu avô, de quem possuo o mesmo nome, recebeu por herança uma fortuna quase igual à que tenho agora, e a aumentou. Enquanto meu pai, Lisânias, tomou-a menor do que é hoje. Eu ficarei satisfeito se não a deixar diminuída a estes jovens, e sim um pouco superior.
Sócrates — Perguntei-te isto porque pareceu-me que não estimas a riqueza em excesso, ao contrário daqueles que a adquirem com o próprio trabalho, os quais a prezam muito mais. Da mesma maneira que os poetas adoram seus versos, e os pais aos filhos, um comerciante preza sua riqueza por ser obra sua, e também por causa de sua utilidade, igualmente a todos os outros homens. Este é o motivo por que é difícil a convivência com eles, pois se interessam apenas pelo dinheiro.
Céfalo — Tens razão.
Sócrates — Diz-me mais uma coisa: qual foi o maior proveito que recebeste pelo fato de possuíres tão grande fortuna?
Céfalo — Se eu o dissesse, não conseguiria convencer muitas pessoas. Como tu sabes, Sócrates, quando alguém chega à idade em que toma consciência de que logo morrerá, surgem-lhe o temor e a preocupação a respeito de assuntos nos quais antes não pensava. Efetivamente, tudo o que se conta a respeito do Hades, onde serão expiados os atos maus praticados em vida, todas essas fábulas das quais até então ele fazia troça, agora aterrorizam sua alma, por temer que correspondam à verdade. E esse alguém — devido à debilidade da velhice, ou porque divisa agora com maior clareza as coisas do além — toma-se repleto de desconfianças e receios, inicia a fazer cálculos e a analisar se cometeu alguma injustiça com alguma pessoa. E aquele que encontrar em sua vida pregressa muitas maldades intimida-se, seja acordando numerosas vezes durante a noite, da mesma forma que as crianças, seja esperando alguma desgraça. Ao contrário, aquele que sabe não haver cometido injustiças sempre alimenta uma doce esperança, benévola ama da velhice, como declara Píndaro. São encantadoras as palavras deste poeta, ó Sócrates, a respeito de quem tiver levado uma existência justa e pura: a doce esperança que lhe acalenta o coração acompanha-o, qual amada velhice, a esperança que governa, mais que tudo, os espíritos vacilantes dos mortais.
Palavras maravilhosas. Devido a isto, tenho as riquezas em grande apreço, não para todos, mas somente para aqueles homens moderados e cautelosos. Jamais enganar alguém ou mentir, ainda que inadvertidamente, nem ser devedor, quer de
sacrifícios aos deuses, quer de dinheiro a uma pessoa, e depois falecer sem nada recear. Para isso, a riqueza é de grande serventia. Existem várias outras vantagens. Porém, mais do que tudo, á Sócrates, é por causa desta finalidade que eu considero a riqueza utilíssima para o homem judicioso.

PLATÃO – A REPÚBLICA – livro 1

Sócrates, Céfalo e Polemarco, diálogo sobre o que é justiça

Sócrates — As tuas são palavras maravilhosas, ó Céfalo. Mas essa virtude de justiça resume-se em proferir a verdade e em restituir o que se tomou de alguém, ou podemos dizer que às vezes é correto e outras vezes incorreto fazer tais coisas? Vê este exemplo: se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois, havendo se tomado insano, as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não lhe as deveria restituir, nem mesmo concordariam em dizer toda a verdade a um homem enlouquecido.
Céfalo — Estou de acordo.
Sócrates — Como vês, justiça não significa ser sincero e devolver o que se tomou.
Polemarco — Eu digo que sim, Sócrates, pelo menos se acreditarmos em Simônides.
Céfalo — Deixo-vos com este assunto, visto que preciso ir ternunar o sacrifício.
Polemarco — Quer dizer que eu não sou o teu herdeiro?
Céfalo (sorrindo) — Não há dúvida que sim. — E afastou-se para o seu sacrifício.
Sócrates — Explique-nos, já que és o herdeiro da discussão, que foi que disse Simônides de tão correto a respeito da justiça.
Polemarco — Que é justo devolver aquilo que devemos. Julgo ser esta asserção correta.
Sócrates — Evidentemente, é impossível não dar razão a Simônides, homem sábio e divino. Não obstante, tu, Polemarco, deves saber o signfficado do que ele diz, ao passo que eu o ignoro. Está claro que Simônides não se expressou a respeito do que falávamos, sobre restituir a uma pessoa algo do qual nos foi confiada a guarda, sendo que essa pessoa veio a perder a razão. Contudo, devemos ou não restituir um objeto do qual foi-nos confiada a guarda?
Polemarco — Claro que devemos.
Sócrates — Mas de forma alguma deve ser restituído se quem o reclamar tiver perdido a razão?
Polemarco — Com certeza.
Sócrates — Então, parece-me que Simônides quer dizer outra coisa quando afirma ser justo que restituamos o que devemos.
Polemarco — Certamente que se trata de outra coisa, por Zeus! Na opinião dele, deve-se fazer sempre o bem aos amigos, nunca o mal.
Sócrates — Compreendo. Não é lícito devolver a uma pessoa o ouro do qual ela nos confiou a guarda, se essa devolução lhe for prejudicial, e se os que o restituem forem seus amigos. É isto que quis dizer Simônides?
Polemarco — Exatamente.
Sócrates — E aos inimigos? Devemos restituir algo que por acaso estamos lhes devendo?
Polemarco — Com certeza. Pois, em meu entendimento, o que um inimigo deve a outro é, logicamente, o que lhe convém: o mal.
Sócrates — Logo, Simônides se expressou por enigmas, como usam fazer os poetas, ao declarar o que entendia por justiça. Aparentemente, para ele, é justo restituir a cada um o que lhe convém, considerando isso restituir o que é devido.
Polemarco — Perfeitamente.
Sócrates — Por Zeus! Portanto, se alguém lhe perguntasse: “ó Simônides, a quem e o que dá de devido e conveniente a arte que é denominada medicinal” Em teu entender, que resposta ele daria?
Polemarco — Evidentemente, que dá remédios, alimentos e bebidas aos doentes.
Sócrates — E a quem dá o que é devido e próprio a arte da culinária?
Polemarco — Temperos aos alimentos.
Sócrates — Certo. Agora, a quem e o que dá a arte que chamamos de justiça?
Polemarco — De acordo com o que afirmamos anteriormente, ela dá benefícios aos amigos e prejuízo aos inimigos.
Sócrates — Logo, o que Simônides entende ser justiça é ajudar os amigos e prejudicar os inimigos?
Polemarco — E o que me parece.
Sócrates — E quem tem mais possibilidade de ajudar os amigos que sofrem e prejudicar os inimigos, no que concerne a doença e a saúde?
Polemarco — O médico.
Sócrates — E aos navegantes, relativamente aos perigos numa viagem no mar?
Polemarco — O piloto.
Sócrates — E quanto ao homem justo? Em que circunstância como ele pode ajudar os amigos e prejudicar os inimigos?
Polemarco — Penso que seja na guerra, lutando contra uns e aliando-se aos outros.
Sócrates — Muito bem. Contudo, amigo Polemarco, o médico é inútil para as pessoas sadias.
Polemarco — Concordo.
Sócrates — E o piloto também o é para os que não estão navegando.
Polemarco — Claro.
Sócrates — E o homem justo, seria igualmente inútil para aqueles que não estão guerreando?
Polemarco — Com isto eu não concordo.
Sócrates — Portanto, a justiça é útil também durante a paz?
Polemarco — Sim.
Sócrates — Isto também vale para a agricultura, não é verdade?
Polemarco — E.
Sócrates — Para conseguirmos os produtos da terra?
Polemarco — Sim.
Sócrates — E, logicamente, também a arte do sapateiro?
Polemarco — Também.
Sócrates — Para podermos conseguir sapatos, certo?
Polemarco — Claro que sim.
Sócrates — Então, com qual objetivo de uso ou posse de que objeto a justiça é útil em tempo de paz?
Polemarco — Para os contratos comerciais, Sócrates.
Sócrates — Por contratos comerciais queres dizer as associações ou outro tipo de contrato?
Polemarco — As associações.
Sócrates — Sendo assim, quem é mais útil no jogo: o justo ou aquele que sabe jogar bastante bem?
Polemarco — Aquele que joga bem.
Sócrates — E quem é mais útil para assentar tijolos e pedras: o justo ou o pedreiro?
Polemarco — Lógico que o pedreiro.
Sócrates — Então, em qual associação julgas o justo mais útil que o pedreiro e o citarista, da mesma forma que o citarista o é em relação ao justo na arte da música?
Polemarco — Creio que nos assuntos monetários.
Sócrates — Exceção feita, talvez, Polemarco, para usar o dinheiro, como, por exemplo, na ocasião de adquirir ou vender um cavalo em sociedade. Nesse caso, seria mais útil um tratador de cavalos, não achas?
Polemarco — Parece-me que sim.
Sócrates — E a respeito de um navio, também é mais útil o construtor ou o piloto, concordas?
Polemarco — Sim.
Sócrates — Sendo assim, em qual circunstância, em que for necessário usar dinheiro ou ouro em sociedade, o homem justo é mais útil que qualquer outro?
Polemarco — Na circunstância de desejarmos fazer um depósito em segurança, Sócrates.
Sócrates — Mas isso significa: quando não utilizamos o dinheiro e preferimos deixá-lo imobilizado. Certo?
Polemarco — Sem dúvida.
Sócrates — Logo, a justiça só é útil quando o dinheiro for inútil?
Polemarco — Creio que sim.
Sócrates — Então, no caso de precisarmos guardar uma podadeira, a justiça é útil tanto do ponto de vista comum como particular; contudo, se precisarmos usá-la, é mais útil a arte de cultivar a vinha?
Polemarco — Parece que sim.
Sócrates — Tu concluis, portanto, que, se quisermos guardar um escudo e uma lira, sem usá-los, a justiça é útil; porém, se desejarmos nos servir deles, é mais útil a arte do soldado e do músico.
Polemarco — Necessariamente.
Sócrates — Por conseguinte, a respeito de todas as outras coisas, a justiça é inútil quando nos servimos dela e útil quando não nos servimos?
Polemarco — Penso que sim.
Sócrates — Logo, meu amigo, a justiça é muito pouco importante, se ela se aplica somente a coisas inúteis. Mas vamos examinar o seguinte: em um combate ou numa luta qualquer, o homem mais capaz de desferir golpes é também o mais capaz de se defender?
Polemarco — Sem dúvida.
Sócrates — E o mais capaz em preservar-se de uma doença não é também o mais capaz em transmiti-la secretamente?
Polemarco — Creio que sim.
Sócrates — Mas não é bom guarda de um exército aquele que furta aos inimigos os seus segredos e os seus planos?
Polemarco — Não resta dúvida.
Sócrates — Por conseguinte, o hábil guardião de uma coisa é também o hábil ladrão dessa mesma coisa.
Polemarco — Parece que sim.
Sócrates — Logo, se o homem justo é hábil em guardar dinheiro, o será também em furtá-lo.
Polemarco — Teu raciocínio leva a essa conclusão.
Sócrates — Portanto, o justo apresenta-se como uma espécie de ladrão, e penso que tu aprendeste isto com Homero. De fato, este poeta enaltece o avô materno de Ulisses, Autólico, dizendo que excedia a todos os homens no furto e no perjúrio. Logo, parece que a justiça, na tua opinião, na de Homero e Simônides, corresponde a uma determinada arte de furtar, porém a favor dos amigos e em prejuízo dos inimigos. Não era isso que tu dizias?
Polemarco — Claro que não! Não sei mais o que eu dizia. No entanto, continuo afirmando que a justiça se resume em ser útil aos amigos e prejudicial aos inimigos.
Sócrates — Mas tu chamas de amigos aqueles que os outros reputam honestos ou aqueles que o são dÉ verdade, apesar de não o parecerem, e da mesma forma os inimigos?
Polemarco — É natural apreciarmos os que julgamos honestos e detestar os que consideramos maus.
Sócrates — Mas os homens não podem se enganar, julgando honestas pessoas que não o são e vice-versa?
Polemarco — Sim, podem.
Sócrates — Logo, para os que se enganam, os honestos são inimigos e os desonestos, amigos?
Polemarco — Sem dúvida.
Sócrates — E, apesar disso, reputam justo ser útil aos desonestos e prejudicial aos honestos?
Polemarco — Parece que sim.
Sócrates — Contudo, os honestos e bons são justos e não têm capacidade de cometer injustiças.
Polemarco — Concordo.
Sócrates — Logo, de acordo com o teu raciocínio, é justo prejudicar os que não cometem injustiças.
Polemarco — De forma alguma, Sócrates, pois o teu raciocínio está errado.
Sócrates — Então, é justo prejudicar os maus e ajudar os bons?
Polemarco — Essa condusão é bem melhor que a precedente.
Sócrates — Então, para numerosas pessoas, Polemarco, que se enganaram a respeito dos homens, a justiça significará prejudicar os amigos — sendo que possuem amigos maus — e ajudar os inimigos — os quais, em verdade, são bons. E, sendo assim, afirmaremos o contrário do que imputávamos a Simônides.
Polemarco — Sem dúvida, parece que é isso mesmo. Mas façamos uma correção, pois corremos o risco de não havermos feito uma precisa definição de amigo e inimigo.
Sócrates — E de que maneira os definimos, Polemarco?
Polemarco — Amigo é aquele que parece honesto.
Sócrates — E de que maneira corrigiremos a definição?
Polemarco — Amigo é aquele que parece e realmente é honesto. Aquele que parece honesto, mas não é, apenas aparenta ser amigo, sem sê-lo. A definição é a mesma a respeito do inimigo.
Sócrates — Por conseguinte, de acordo com o teu raciocínio, amigo é o indivíduo bom e inimigo, o mau?
Polemarco — Exatamente.
Sócrates — Então, queres que acrescentemos ao que dissemos anteriormente a respeito da justiça que é justo ajudar o amigo e prejudicar o inimigo. Agora, devemos também afirmar que é justo ajudar o amigo bom e prejudicar o inimigo mau?
Polemarco — Precisamente. Dessa maneira parece-me bem explicado.
Sócrates — Logo, é peculiar ao justo prejudicar a quem quer que seja?
Polemarco — Não há dúvida de que devemos prejudicar os maus que são nossos inimigos.
Sócrates — E se fazemos mal aos cavalos, eles se tornam melhores ou piores?
Polemarco — Piores.
Sócrates — Relativamente à virtude dos cães ou à dos cavalos?
Polemarco — A dos cavalos.
Sócrates — Então, quanto aos cães a que fizermos mal, eles se tomarão piores em relação à virtude dos cães, e não à dos cavalos?
Polemarco — Exatamente.
Sócrates — E quanto aos homens a quem se faz mal, podemos também afirmar que se tomam piores conforme a virtude humana?
Polemarco — Isso mesmo.
Sócrates— Mas a justiça não é virtude especificamente humana?
Polemarco — Sim.
Sócrates — Por conseguinte, meu amigo, os homens contra quem se pratica o mal tornam-se obrigatoriamente piores.
Polemarco — Concordo.
Sócrates — Por acaso, é possível a um músico, por intermédio de sua arte, tomar outras pessoas ignorantes em música?
Polemarco — Isso é impossível.
Sócrates — E, por intermédio da arte eqüestre, pode um cavaleiro tomar outras pessoas incapazes de montar?
Polemarco — Também é impossível.
Sócrates — Mas, através da justiça, é possível que um justo tome alguém injusto? Ou, de forma geral, pela virtude, os bons podem transformar os outros em maus?
Polemarco — Não podem.
Sócrates — Realmente, creio que ao calor não é dado esfriar, e sim o contrário.
Polemarco — Justamente.
Sócrates — Nem à aridez é dado umedecer, mas o contrário.
Polemarco — Não há dúvida.
Sócrates — Nem ao homem bom ser mau, mas o contrário.
Polemarco — E o que parece.
Sócrates — Portanto, o homem justo é bom?
Polemarco — Evidentemente.
Sócrates — Então, Polemarco, não é adequado a um homem justo prejudicar seja a um amigo, seja a ninguém, mas é adequado ao seu oposto, o homem injusto.
Polemarco — Estás dizendo a pura verdade, Sócrates.
Sócrates — Por conseguinte, se alguém declara que a justiça significa restituir a cada um o que lhe é devido, e se por isso entende que o homem justo deve prejudicar os inimigos e ajudar os amigos, não é sábio quem expõe tais ideias. Pois a verdade é bem outra: que não é lícito fazer o mal a ninguém e em nenhuma ocasião.
Polemarco — Estou de pleno acordo.
Sócrates — Sendo assim, lutaremos juntos, tu e eu, contra quem imputar semelhante princípio a Simônides, a Bias, a Pítaco ou a qualquer outro homem sábio.
Polemarco — Associo-me com prazer à luta.
Sócrates — Sabes a quem atribuo a asserção de que é justo ajudar os amigos e prejudicar os inimigos?
Polemarco — A quem?
Sócrates — A Periandro, a Perdicas, a Xerxes, a Ismênio, de Tebas, ou a qualquer outro homem rico que se considerava assaz poderoso.
Polemarco — Eis uma grande verdade.
Sócrates — Porém, visto que nem a justiça nem o justo nos pareceram signfficar isso, como poderemos defini-los?

PLATÃO – A REPÚBLICA – livro 1

A Velhice, para Sócrates e Céfalo, segundo Platão

Sócrates — Em verdade, Céfalo, eu aprecio conversar com os velhos. Penso que devemos aprender com eles, pois são pessoas que nos antecederam num caminho que também iremos trilhar, para assim conhecermos como é: áspero e árduo ou tranquilo e cômodo. Com certeza, ser-me-ia agradável conhecer tua opinião, porquanto já alcançaste a fase da existência que poetas denominam “o limiar da velhice”. Como julgas este momento da tua vida?

Céfalo — Agrada-me, Sócrates, expressar meu pensamento. Cultivo o hábito de encontrar-me com pessoas da mesma idade. Muitos de nós lamentam-se, recordam os prazeres da juventude e, ao lembrar do amor, da bebida, da boa comida e de outros prazeres, atormentam-se como pessoas privadas de bens notáveis, que em outra época viviam bem e que, agora, nem ao menos vivem. Vários manifestam pesar pelas ofensas oriundas dos parentes e imputam à velhice a causa de tantos sofrimentos. Contudo, em meu modo de ver, Sócrates, eles se enganam a respeito da verdadeira causa de suas misérias, pois, se ela fosse realmente a velhice, também eu sentiria o mesmo desconforto, assim como todos aqueles que chegaram a esta fase da vida. Mas a verdade é que tenho encontrado velhos que se expressam de maneira muito diferente. Certa vez, indagaram ao poeta Sófocles, em minha presença:
— Qual é tua opinião a respeito do amor, Sófocles? Ainda te julgas capaz de amar?
E ele respondeu:
— Falemos baixo! Libertei-me do amor com o prazer de quem se liberta de um senhor colérico e truculento. Naquela época dei-lhe razão, e dou-lhe ainda hoje. Porque é bem verdade que a velhice nos proporciona repouso, livrando-nos de todas as paixões. Quando os desejos diminuem, a asserção de Sófocles revela toda a sua justeza. E como se nos libertássemos de inúmeros e enfurecidos senhores. No que diz respeito aos desgostos, aos aborrecimentos domésticos, estes têm apenas uma causa, Sócrates, que não é a velhice, mas o caráter dos homens. Se eles tiverem bom caráter e espírito equilibrado, a velhice não lhes será um fardo insuportável. Para os que não são assim, tanto a velhice quanto a juventude lhes serão desgostosas.

E eu (Sócrates), encantado com as suas palavras e desejoso de continuar a ouvi-lo, provoquei-o e disse-lhe:
— Eu creio, Céfalo, não serem muitos os que apoiam tuas ideias, porque julgam não ser teu caráter, porém a tua riqueza que te ajuda a tolerar bem a velhice. Com efeito, o dinheiro traz muitas compensações.

Céfalo — É verdade que não me apoiam. E têm certa razão, apesar de não ser tanta quanto creem. Existe muito de verdadeiro na resposta de Temfstocles ao indivíduo de Serifo que o insultou dizendo-lhe que era famoso por causa de sua pátria e não por causa de seus próprios méritos. Eu não teria me transformado num homem célebre, se tivesse nascido em Serifo, tampouco tu, se fosses ateniense. Do mesmo modo, àqueles que, não sendo ricos, se lamentam da velhice, poder-se-ia dizer que, se é verdade que um homem bom não pode ser totalmente feliz na velhice, também riqueza alguma poderá proporcionar a paz a um homem mau.

PLATÃO – A REPÚBLICA – livro 1

Filósofos Pré-Socráticos

Dados biográficos básicos sobre quinze grandes pensadores que viveram um pouco antes, ou no tempo de Sócrates.

1. Tales de Mileto 625/4 – 558 A.C.

Natural da Jônia, Ásia Menor, de descendência Fenícia. Considerado o primeiro físico grego, buscava informação sobre a natureza em geral, tendo a água como princípio. Não se sabe se escreveu algum livro. Sua fonte de informação se dá por doxografias (Aristótoles, “Metafísica”, I, e “Da Alma”, e Simplício, “Física”.

2. Anaximandro de Mileto 610-547 A.C

Sucessor e discípulo de Tales. Suas áreas de atuação foram: geometria, matemática, astronomia e política. A fonte de informação sobre ele se dá por relatos da existência de fraguimentos de um livro chamado “Sobre A Natureza” de sua autoria, além de, doxografias (Aristóteles, “Física”, III, Aristótoles, “Meteorologia”, II, e Simplício, “Física”)

3. Anaxímenes de Mileto 585-528/5 A.C.

Discípulo e continuador de Anaximandro. Dedicou-se à meteorologia e foi o primeiro a afirmar que a lua recebe sua luz do sol. Escreveu uma obra em prosa, “Sobre a Natureza”.

4. Pitágoras de Samos 580/78-497/6 A.C.

Nasceu em Samos, mas pelo ano 540 A.C. foi para a Magna Grécia (sul da Itália). Não deixou nada escrito, entretanto, fundou em Crotona uma associação filosófica e religiosa, de doutrinas secretas, e com adeptos ativos na política. Eles provocaram uma revolta, Pitágoras teve que abandonar Crotona e se refugiar em Metaponto, onde morreu. Sua associação havia se estendido por Torento, Metaponto, Síbiris, Régio e Siracusa. O pitarogorismo exerceu profunda influência na filosofia grega. Posteriormente, Filonau e Arquitas, deram continuidade ao pitagorismo.

5. Xenófanes de Colofão 570-528 A.C.

Nasceu em Colofão, na Itália, porém, passou parte de sua vida na Silícia. Foi sábio, poeta e rapsodo (poeta e cantor popular que seguia de cidade em cidade). Escreveu em verso, em oposição aos filósofos de Mileto, que escreviam em prosa. Tornou-se famoso por atacar Hesíodo e Homero (poetas), e Tales, Pitágoras e Epimênides (Pensadores).

6. Heráclito de Éfeso 540-470 A.C.

Nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, e era descendente do fundador da cidade. Desprezava a plebe, os antigos poetas, os filósofos de seu tempo e a religião. Escreveu um livro chamado “Sobre a Natureza”. Estabeleceu o ser permanente e a existência de lei universal e fixa regedora e fundamento de tudo – o Logos.

 7. Parmênides de Eléia 530-460 A.C.

Nasceu em Eléia, hoje chamada Vélia, na Itália, foi discípulo do pitagórico Aminías. Combateu a filosofia dos jônicos, com Zenão, em Atenas. Escreveu um poema filosófico, em verso: “Sobre a Natureza”.

8. Zenão de Eléia 504/5-? A.C.

Natural da Eléia, Itália, interveio na política, criando leis para a sua pátria. Foi prezo ao conspirar contra a tirania, foi torturado e morto por revelar seus comparsas. Escreveu, em prosa: “Discussões”, “Contra os Físicos”, “Sobre a Natureza”, e “Explicação Crítica de Empédocles”. Zenão defendeu o ser uno, contínuo e indivisível de seu mestre Parmanênides, contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos pitagóricos. Desenvolveu argumentos complexos a respeito do movimento.

9. Melisso de Samos

Nasceu em Samos, ilha do Mar Egeu, foi filósofo e político grego importante. Derrotou os atenienses em 441 A.C. comandando ema esquadra. Escreveu um poema intitulado Sobre o Ser ou Sobre a Natureza. Era defensor de Parmênides, contra os pitagóricos e contra Empédocles.

10. Empédocles de Agrigento 490-435 A.C.

Natural da Colônia de Agrigento, na Silícia. Era um defensor da democracia, cientista, místico, alcmeônida, pitagórico e órfico. Escreveu dois poemas em jônico: “Sobre a Natureza” e “Purificações”. Atribuía-se possuir poderes mágicos. Ao princípio das coisas, atribui quatro elementos: fogo, terra, água e ar, substituindo a ideia perseguida pelos jônicos de princípio único. Misturava o ser imóvel de Parmênides com o ser em transformação de Heráclito. Considerava a influência do amor e do ódio como causas.

11. Filolau de Crotona

Pitagórico do sul da Itália, nascido em Crotona, em meados do século V A.C. Foi mestre de Demócrito e de Arquitas. Escreveu um livro sobre a doutrina pitagórica que influenciou muito o pensamento de Platão.

12. Arquitas de Tarento 400-365 A.C.

Pitagórico, discípulo de Filolau e amigo de Platão. Foi eleito governador de Tarento por sete vezes consecutivas. Dentre muitas obras perdidas que lhe são atribuídas, restam fragmentos de “Harmonia” e das “Diatribes”, ou Conversas, sobre matemática e música. “Os sons agudos se movem depressa, e os graves lentamente”.

13. Anaxágoras de Clazômenas 500-428 A.C.

Nasceu em Clazômenas, Jônia, Ásia Menor, e viveu aproximadamente trinta anos em Atenas, onde fundou a primeira escola filosófica. Foi discípulo de Péricles, dedicou-se à física, matemática, astronomia e a meteorologia. Para ele o sol era uma pedra incandescente, e não divindade, sendo acusado por isso em 431 A.C. Escreveu um livro “Sobre a Natureza”, do qual restam alguns fragmentos, e também, talvez, dois tratados, um sobre perspectiva, e outro, sobre a quadradura do círculo, além de livro de problemas.
Anaxágoras é considerado o filósofo pré-socrático que mais originou variedades de discussões e interpretações. Fundou uma escola também em Lâmpsaco, na Jônia, onde cunharam moedas com sua efígie e lhe fizeram epitáfios.

14. Leucipo de Mileto 500-430 A.C.

Nasceu em Mileto, ou Eléia, viveu na época dos sofistas, de Anaxágoras e de Sócrates. Leucipo foi considerado o criador da teoria dos átomos por Aristóteles. Ele foi autor de duas obras: “A Grande Ordem do Mundo” e “Sobre o Espírito”.

15. Demócrito de Abdera 460-370 A.C.

Discípulo de Leucipo e seu sucessor na Escola de Abdera, nasceu em Abdera, colônia Jônica da Trácia. Deixou aproximadamente noventa obras escritas, segundo Diógenes Laércio, restando apenas fragmentos de algumas, de conteúdo teórico e outras de conteúdo moral. É considerado o sistematizador da doutrina atomista.

Revolução Pernambucana – resumo das causas

A Revolução Pernambucana foi uma revolta, ou movimento social de caráter emancipacionista que, em 1817, ocorreu em Pernambucano, sendo considerado um dos movimentos de caráter revolucionário mais importantes do período colonial brasileiro.
A chegada e atuação da corte portuguesa no Brasil, com um período de ostentação decorrido entre os anos de 1817 a 1818, primeiro com a chegada da noiva do príncipe herdeiro D. Pedro, a princesa Leopoldina, filha do imperador austro-húngaro, e em maio de 1818 por ocasião do aniversário e coroação de D. João VI.

A insatisfação popular com a chegada e funcionamento da corte portuguesa no Brasil, desde o ano de 1808, se dava, principalmente, pelo questionamento com relação a grande quantidade de portugueses nos cargos públicos; além dos impostos e tributos criados no Brasil por D. João VI a partir da chegada da corte portuguesa ao Brasil.

A influência dos ideais iluministas, sobre tudo, na crítica às estruturas políticas da monarquia absolutista, e os ideais da Revolução Francesa, “liberdade, igualdade e fraternidade”, eram notórios, principalmente entre os maçons pernambucanos.

A região estava abatida por uma crise econômica que atingia, principalmente, as camadas mais pobres da população pernambucana, provocada, principalmente, pela queda nas exportações do principal produto da região, o açúcar. Soma-se a isso a seca sofrida em 1816, geraram como resultado a fome e a miséria do povo.

http://historiasylvio.blogspot.com.br/2013/11/revolucao-pernambucana-de-1817.html

http://www.infoescola.com/historia/revolucao-pernambucana-de-1817/

http://historiadores.skyrock.com/1910745965-Revolucao-Pernambucana-de-1817.html

http://www.infopedia.pt/$corte-portuguesa-no-brasil;jsessionid=bTMXHfqJU8uGeQrQW-Z2kg__

http://pt.wikipedia.org/wiki/Transfer%C3%AAncia_da_corte_portuguesa_para_o_Brasil

Teoria do conhecimento

O três períodos da filosofia grega

Após uma existência predominantemente marcada pelo plano divino, o surgimento da escrita, da moeda e dos legisladores, apresenta uma nova concepção para a humanidade, o cidadão e o filósofo. Então, os gregos formam uma escola filosófica com influência até os dias atuais, costumeiramente, dividida em três períodos:

PERÍODO PRÉ-SOCRÁTICO (séculos VII e VI a.C.): marca o início do desligamento entre a filosofia e o pensamento mítico.

PERÍODO SOCRÁTICO OU CLÁSSICO (séculos V e IV a.C.): tendo Atenas como centro cultural, e como personagens, Sócrates, seu discípulo Platão, e posteriormente, Aristóteles, que foi discípulo de Platão. São desse período, os sofistas, que eram muito criticados por seus contemporâneos.

PERÍODO PÓS-SOCRÁTICO (século III e II a.C.): a expansão macedônica sobre os territórios gregos e a formação do império de Alexandre Magno, marca este período. A influência oriental marca, após a morte de Alexandre, a época helenística, com duas correntes filosóficas, estoicismo e epicurismo, que são as principais expressões do período pós-socrático.

Heráclito e Parmênides, dois filósofos pré-socráticos

  • Heráclito (tudo flui)

Nascido em Éfeso, na Jônia, (atual Turquia), viveu de 544 a.C. a 484 a. C., teve sua visão baseada na multiplicidade do real. “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou. Para ele, essa multiplicidade se dá porque o ser está constituído de oposições internas, “a guerra é pai de todos, rei de todos”, e é da luta que nasce a harmonia, como síntese dos contrários. Heráclito teve a intuição da lógica dialética, que foi elaborada por Hegel e depois por Marx, no século XIX.

  • Parmênides (o ser é imóvel)

Viveu (c.540-c. 470 a.C.) em Eléia, cidade do sul da Magna Grécia (atual Itália) e é o principal expoente da chamada escola eleática. Ele influenciou decisivamente o pensamento ocidental e criticou fortemente a filosofia de Heráclito, tendo por absurdo considerar que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo, baseando-se no princípio do qual “o ser é” e o “não ser não é”.  Os lógicos chamaram isso de princípio de identidade, base da metafísica posterior.

Os sofistas

No período áureo da cultura grega (V a.C.) viveram os sofistas, e alguns foram interlocutores de Sócrates. Os mais famosos foram: Protágoras (485-411 a.C.); Górgias (485-380 a.C.); Híppias; e também, Trasímaco, Pródico, Hipódamos, entre outros.

A palavra sofista quer dizer “professor de sabedoria”, mas adquiriu o sentido pejorativo de “homem capcioso”, provavelmente devido às críticas feitas por Sócrates e Platão em relação a eles. Os sofistas formularam um currículo de estudos: gramática (como iniciadores), retórica e dialética; por influência dos pitagóricos, eles desenvolveram a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.

 Sócrates, Platão e Aristóteles

Sócrates (c.470-399 a.C.) embora tenha sido incluído entre os sofistas, recusava a classificação e se opunha a eles de forma crítica. Ele nada deixou escrito, seus discípulos Xenofonte e Platão divulgaram suas idéias. Sócrates foi condenado e morto, sob a acusação de não crer nos deuses da cidade.

Ele criou seu método do conhecimento e o dividiu em duas partes chamadas ironia (em grego, “perguntar”) e maiêutica (em grego, “parto”).

A primeira chamada ironia (em grego, “perguntar”), considerada destrutiva, partindo, em suas discussões, do pressuposto “só sei que nada sei”; onde, hábeis perguntas feitas por ele a outra pessoa dita conhecedora de um determinado assunto, tem por objetivo convencê-la de sua ignorância.

A segunda chamada maiêutica (em grego, “parto”), nome em homenagem a sua mãe, que era parteira. Esta parte consiste em criar novas idéias, ou “dá-las à luz”.

Platão (428-347 a.C.) fundou em Atenas, onde viveu, a escola denominada Academia. A síntese de seu pensamento está ilustrada no “mito da caverna”, onde ele imagina os homens acorrentados em uma caverna desde suas infâncias, tendo um deles se soltado da corrente e visto a luz, ao voltar e contar aos outras não os consegue convencer.

De Sócrates, seu mestre, aproveita a nova noção de logos, e ao continuar a busca da compreensão do real, cria a palavra ideia, para referir-se à intuição intelectual.

Alguns teóricos interpretam o pensamento de Parmênides e de Platão como representantes do idealismo, que é uma expressão do pensamento moderno, no momento em que a teoria do conhecimento se torna reflexão autônoma.

Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, na Calcídica (região dependente da Macedônia), e seu pai foi médico do rei da Macedônia, Felipe, do qual o filho Alexandre foi discípulo de Aristóteles, até assumir o poder precocemente na expansão do império. Frequentou a Academia de Platão e foi criticado por sua fidelidade ao seu mestre, para as quais se justificou dizendo: “Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”.

Aristóteles é autor de uma extensa obra que é uma dos grandes sistemas filosóficos. Fundou o Liceu em Atenas, em 340 a.C., vizinho do templo de Apolo Lício.

Resumo de conteúdo, 1º semestre de Educação Física, Érica Barcellos

O Ethos na música, a influência no caráter

A influência da música sobre o comportamento humano sempre esteve presente entre os questionamentos filosóficos acadêmicos e leigos, tão quanto a própria música esteve presente na vida do homem em toda a sua existência. A doutrina do ethos está ligada ao pensamento filosófico grego sobre a influência dos modos e ritmos musicais na formulação do comportamento humano. Trata da relação entre os movimentos musicais e os movimentos humanos, onde a música tem elementos capazes de moldar o caráter humano. Para Sócrates, a música e a ginástica eram a essência da educação, todavia, a música aperfeiçoa a alma e por isso deve predominar sobre a ginástica. A alma convenientemente educada se encarregará do corpo.

Sócrates — Resta-nos tratar do caráter do canto e da melodia, concordas?
Adimanto — Sim, evidentemente.
Sócrates — Haveria alguém que não dissesse, de pronto, o que devemos dizer acerca deles e o que devem ser, se nos quisermos manter de acordo com as ideias precedentes?
Então, Glauco, sorrindo, disse:
Por mim, Sócrates, corro o risco de ser a exceção, porque não estou muito em condições de inferir, neste momento, o que devem ser essas coisas; no entanto, suspeito-o.
Sócrates — Estás ao menos em condições de fazer esta primeira observação, que a melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo.
Glauco — Quanto a isso, sim.
Sócrates — Quanto às palavras, diferem das que não são cantadas? Não devem ser compostas segundo as regras que enunciamos há pouco e de forma semelhante?
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — E a harmonia e o ritmo devem corresponder às palavras?
Glauco — Sim.
Sócrates — Já dissemos que não deveriam existir queixas e lamentações nos nossos discursos.
Glauco — Com efeito, por serem desnecessárias.
Sócrates — Quais são as harmonias plangentes? Diz-nos, visto que és músico.
Glauco — São a lídia mista, a aguda e outras semelhantes.
Sócrates — Convém, pois, suprimi-las, não é verdade? Porque são inúteis para as mulheres honradas e, com maior razão, para os homens.
Glauco — Certamente.
Sócrates — Nada há mais inconveniente para os guardiães do que a embriaguez, a moleza e a indolência.
Glauco — Sem dúvida.
Sócrates — Quais são harmonias efeminadas usadas nos banquetes?
Glauco — A jânica e a lídia que se denominam harmonias lassas.
Sócrates — De tais harmonias, meu amigo, tu te servirás para formar guerreiros?
Glauco — De maneira nenhuma. Receio que não te restem senão a dórica e a frígia.
Sócrates — Não conheço todas as harmonias, mas deixa-nos aquela que imita os tons e as entonações de um valente empenhado em batalha ou em qualquer outra ação violenta, quando, por infortúnio, corre ao encontro dos ferimentos, da morte ou é atingido por outra infelicidade, e, em todas essas circunstâncias, firme no seu posto e resoluto, repele os ataques do destino. Deixa-nos outra harmonia para imitar o homem empenhado numa ação pacífica, não violenta mas voluntária, que procura persuadir, para obter o que pede, quer um deus por intermédio de suas preces, quer um homem por intermédio das suas lições e conselhos, ou, ao contrário, solicitado, ensinado, convencido, se submete a outro e, tendo por estes meios sido bem-sucedido, não se enche de orgulho, mas se comporta em todas as circunstâncias com sabedoria e moderação, feliz com o que lhe acontece. Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitarão com mais beleza as entonações dos infelizes, dos felizes, dos sábios e dos valentes, estas deixa-as ficar.
Glauco — As harmonias que me pedes para deixar não são senão aquelas que mencionei há pouco.
Sócrates — Não precisaremos pois, para os nossos cantos e as nossas melodias, de instrumentos com muitas cordas, que reproduzem todas as harmonias.
Glauco — Não, por certo.

(A República / Platão).